A Heautoscopia
Adalberto Tripicchio
Introdução
Do ponto de vista literário, histórico e bibliográfico, os temas da
heautoscopia e o delírio dos sósias não podem ser mais díspares. Frente às
escassas obras literárias que tocaram no delírio dos sósias, aparece na
história da literatura uma incômoda série de autores que se ocuparam da
vivência do próprio duplo. Alguns nomes desta série: Andersen, Annunzio,
Aristóteles, Baudelaire, Dostoiéwski, Goethe, Hoffmann, Kafka, Maupassant,
Musset, Oscar Wilde.
Desenvolvimento
Aristóteles informa sobre um viajante, que estava há tempos sem dormir. Uma
noite em que cavalgava através de uma neblina muito espessa, viu repentinamente
cavalgar a própria imagem a seu lado. Esta imagem imitava todos os seus movimentos
e ações. Quando teve que atravessar um rio, o fantasma fez o mesmo. Por fim,
quando a neblina diminuiu, a aparição esfumaçou-se.
Esta
observação de Aristóteles é a primeira descrição de vivência heautoscópica que
veio à luz. Uma referência posterior sobre a vivência heautoscópica figura na
obra Malleus maleficorum, de Nider, publicada em 1614: um habitante de
Colônia, tão logo se deitava na cama, começava a ver ao seu lado uma imagem de
si mesmo. O fenômeno se prolongou durante algum tempo, apesar de que o próprio
indivíduo o considerava como algo impossível.
Goethe diz
como viu sua própria imagem "não com os olhos do corpo, mas com os, do
espírito". Observe-se aqui a ausência de elementos alucinatórios.
A
heautoscopia enquanto conceito psiquiátrico tem uma história longa e uma
bibliografia desconcertante, dados que se contrapõem às escassas referências
existentes sobre o delírio dos sósias ou síndrome de Capgras (vide Artigo na
RedePsi). O bombardeio bibliográfico, segundo anotações de Flournoy (1902),
inicia-se em França por Bonnet em 1760, e continua na Alemanha por Hagen em
1837. Posteriormente se ocuparam do tema: Féré (1891), Leroy (1898), Flournoy
(1902), Sollier (1903), Bain (1903), Schilder (1914), Henschen (1925),
Schroeder (1925 e 1926), Menninger-Lerchenthal (1935), Haug (1939), López Ibor
(1950, 1957 e 1966), Hecaen e Ajuriaguerra (1952), Conrad (1953), Lippman
(1953), Critchley (1953), Pearson e Dewhurst (1954), Russel e Whitty (1955),
Leischner (1961) e outros mais.
A Hagen
(1837) se deve a primeira tentativa de quebrar a unidade descritiva da
aparição do próprio duplo. Distingue dois modos de aparecer o duplo próprio: um
duplo de figura e feições idênticas às do indivíduo, e um duplo de forma
corpórea diferente da do indivíduo. A irrupção de um duplo do primeiro tipo
pertence ao que se chama heautoscopia. O segundo tipo de duplo foi chamado por
Hagen deuteroscopia.
Féré
(1891) aplica a designação de "autoscopia" à experiência de um médico
gravemente enfermo que acreditava ver sua própria imagem como em um espelho.
Menninger-Lerchenthal (1935) recusa esta designação, cuja
significação etimológica estrita corresponde ao ato de "olhar-se a si
mesmo", e a significação clínica, ao ato de "examinar os próprios
órgãos", aplicando-se especialmente em laringologia ao exame da garganta,
e a substitui por "heautoscopia", já que o fenômeno consiste em uma
"percepção enganosa da figura de si mesmo".
Sollier
(1903) distingue nas experiências pessoais de duplicação: a duplicação da
pessoa física, a duplicação da pessoa intelectual e a duplicação da pessoa
moral. E chama "autoscopia" ou "alucinação autoscópica" à
duplicação sensorial.
Sollier
(1903) apresenta o primeiro sistema classificatório das "alucinações
autoscópicas". Divide-as em internas e externas. Nas internas, o indivíduo
vê seus órgãos interiores. Nas externas, vê seu corpo exterior ou partes do
mesmo. Na "autoscopia interna" não há uma verdadeira alucinação
visual, mas uma "verdadeira sensação objetivada". A "autoscopia
externa" é mais uma representação, que pode considerar-se como uma
verdadeira alucinação visual. Distribui estas alucinações autoscópicas em
positivas e negativas. Nas positivas, o enfermo se vê a si mesmo; nas negativas,
o paciente não pode ver-se a si mesmo, ainda que se contemple no espelho.
As
"autoscopias positivas", segundo Sollier se subdividem nas variantes:
autoscopia especular ou alucinação especular; autoscopia díspar ou
deuteroscópica, na qual o duplo não tem a forma do indivíduo, mas
espiritualmente é idêntico a ele; e a autoscopia cenestésica, onde o duplo não
é visto, mas somente experimentado em forma de sentimento e reconhecido como
idêntico ao sujeito.
Os
conceitos da "autoscopia negativa" e da "autoscopia
interna", a meu ver, devem excluir-se do que hoje se chama heautoscopia.
Por um lado, a autêntica heautoscopia negativa é muito rara que Leischner
(1961) e outros autores a estudam juntamente com o fenômeno que consiste na
apreciação visual de uma metamorfose corporal própria; fenômeno que em
realidade pertence às vivências de desrealização corporal, isto é, às vivências
de estranheza referidas ao próprio corpo enquanto objeto. A título de exemplo,
eis um caso descrito por Lhermitte (1951), que aparece incluso na heautoscopia
negativa no trabalho de Leischner:
- Um
homem que se barbeava viu, de repente, suas feições completamente alteradas.
Assustou-se tanto que jogou o aparelho de barbear longe e fugiu correndo.
Por outro
lado, o conceito de "autoscopia interna" foi muito criticado. Para
Bain (1903), é um fenômeno cenestésico, uma percepção real que só é acessível
aos indivíduos em transe hipnótico e às histéricas graves. Certas histéricas
podem tomar consciência não somente da estrutura macroscópica de seus órgãos
internos, mas, às vezes, sua estrutura microscópica, como também, elas podem
perceber seu funcionamento e dominá-lo voluntariamente. Algumas experiências
desta espécie foram inventadas peIas pacientes histéricas ou apareceram nelas
sob a pressão das sugestões do clínico. É sabido peIa observação de histéricas,
que elas, para atraírem mais a atenção dos clínicos, simulam a capacidade de
ver através da pele. Menninger-Lerchenthal (1935) adota uma postura cética ante
a "autoscopia interna". As escassas descrições existentes de casos
deste fenômeno, a meu ver, representam quase sem exceção um produto psicógeno
artificial. Ao contrário da heautoscopia, que prevalece nos homens, a
"autoscopia interna" foi descrita somente em mulheres histéricas.
Deste
recorte das "autoscopias" de Sollier, só se confirmam as "autoscopias
externas positivas".
Aqui está
incrustado o núcleo da atual heautoscopia. Poderia falar-se, em princípio,
seguindo a classificação de Sollier, de heautoscopia especular, díspar e
cenestésica, onde os tipos díspar e cenestésico correspondem plenamente a
vivências de despersonalização. Torna-se surpreendente que esta pista tenha
sido perdida por grande parte dos autores modernos. Por exemplo:
Mennlnger-Lerchenthal (1935) define unicamente a heautoscopia como "uma
alucinação óptico-cenestésica do esquema corporal, cujo desdobramento é
produzido por processos psíquicos e mecanismos ligados ao sistema vestibular,
tronco cerebral e córtex parieto-occipital". Define, então, este fenômeno
"como um esquema corporal alucinado". E destaca que o "eu"
central, pelo qual o homem toma consciência de si mesmo, permanece incólume.
O próprio
Menninger-Lerchenthal (1935), ao abordar o estudo do condicionamento
psicológico e psicopatológico da heautoscopia, admite, apesar de sua concepção
unitária do fenômeno heautoscópico, a influência de uma ampla série de
fatores:
-
Determinadas situações afetivas que reforçam a capacidade de auto-observação e
auto-análise.
- Certa
turvação da consciência que pode tomar a forma de sonho, da sonolência em
estado vigil ou de uma breve interrupção da consciência lúcida, por exemplo,
nos estados de fadiga ou de hiperatividade da fantasia. Em outros casos há uma
leve alteração da consciência secundária a um transtorno do sistema vestibular.
- Uma
disfunção do esquema corporal que conduz à dissociação deste esquema em forma
de uma alucinação global óptico-cenestésica ou em forma de uma fusão de
fenômenos ópticos e cenestésicos anormais. O fato de que o vestuário do
indivíduo e outros objetos ligados a ele circunstancialmente possam ser
incluídos na aparição heautoscópica, representa uma confirmação de que
pertençam ao esquema corporal.
- Uma
alta capacidade de auto-observação ou a freqüente observação da imagem própria
em um espelho. (Este dado está em flagrante contradição com a nítida
prevalência masculina da heautoscopia).
Para
Menninger-Lerchenthal (1935), a heautoscopia tem certo parentesco com a
despersonalização, o déjà vu, o transitivismo e a voz alucinatória que chama o
indivíduo por seu próprio nome. A aparição de todos estes fenômenos tem uma
base comum: a alteração fundamental da consciência do "eu" e dos
transtornos do esquema corporal (o eu físico). Pode-se descrever a
heautoscopia como uma "aparição transitivista", como uma projeção
exterior do "eu".
A
heautoscopia, a meu ver, é uma síndrome que não só varia amplamente em sua
etiologia correlata, mas também, em seu condicionamento psíquico e em sua
sintomatologia. Atendendo a seu modo de aparecer, podem distinguir-se três
variedades aparentes:
(1) a
despersonalização heautoscópica,
(2) a
alucinação heautoscópica, e
(3) a
vivência delirante heautoscópica.
As duas
primeiras variedades correspondem, respectivamente, à "autoscopia
cenestésica" e a "autoscopia especular" da clasificação de
Sollier. À autoscopia deuteroscópica de Sollier, na qual o indivíduo se sente
ligado psiquicamente a um duplo de figura corporal diferente da sua, também se
deve incluir a despersonalização heautoscópica. O delírio heautoscópico de
nossa classificação atual não aparece representado nas modalidades de Sollier.
A
heautoscopia ou o próprio duplo, segundo Karl Jaspers (1953), consiste em
perceber ou em representar-se o próprio corpo no mundo exterior, como uma
espécie de segundo "eu". Acrescenta Jaspers que o fenômeno não é
unitário; pode tratar-se de uma alucinação, uma vivencia delirante, uma
cognição corpórea ou uma representação. O sinal idêntico consiste em que o
esquema corporal próprio cobra sua realidade no espaço exterior. Foi López
Ibor (1957) quem formulou com toda clareza os íntimos vínculos existentes entre
a heautoscopia e a despersonalização.
A
ordenação hierárquica das três variedades aparentes de heautoscopia, de acordo
com o critério fenomenológico, permite distinguir duas modalidades primárias
de heautoscopia:
(1) uma
modalidade muito freqüente, a despersonalização heautoscópica; e
(2) uma
modalidade rara, a vivencia delirante heautoscópica.
A alucinação
heautoscópica deve considerar-se como um produto secundário da
despersonalização. A modalidade nuclear e pura da heautoscopia corresponde,
pois, à experiência de despersonalização.
A
aceitação da despersonalização heautoscópica como fenômeno heautoscópico
básico, obriga a modificar notoriamente as explicações que se vinham
incorporando ao gênero das heautoscopias. Como López lbor (1957 e 1966)
pontifica, deixam de ter vigência os conceitos de cenestesia e de esquema
corporal e passa ao primeiro plano o "eu" corporal.
O
"eu" corporal, sinônimo de corporeidade e de vivência do corpo, diz
López Ibor, é uma experiência primariamente única. "Não existe um esquema
corporal como síntese a agregação de todas as sensações que integram a
cenestesia". (O conjunto das sensações internas ou orgânicas constitui a
cenestesia). "A experiência do ‘eu' corporal, continua López Ibor, não se
oferece como uma notícia passiva; é um erro acreditar, como no antigo conceito
da cenestesia, que se trata de uma espécie de telegrama que vai enviando cada
órgão, e, por que não cada célula, a um centro onde habita essa percepção do
‘eu' corporal que se chama cenestesia." Pensava-se assim mesmo que os
elementos sensoriais da cenestesia eram localizados em virtude de uma função do
vestibular, "o nervo do espaço", e que o esquema de nosso corpo era,
assim, uma função vestibular. "Todas estas idéias acerca do modo de
constituir-se em esquema corporal - acrescenta López Ibor - estão montadas
sabre uma psicologia de tipo associacionista, no qual os conteúdos psíquicos
superiores provêm da agregação de elementos". Em definitivo: a vivência
de nossa existência corporal não provém de uma síntese de sensações, mas
constitui uma experiência global unitária. Sua tonalidade nos é dada por essas
sensações globais da corporeidade que chamamos "sentimentos vitais"
(Scheler).
A
despersonalização heautoscópica é uma experiência de estranhamento referido ao
"eu" corporal. "O ‘eu' - diz López Ibor - se sente como um corpo
astral emigrado do corpo." Sollier (1903) descreve a "autoscopia
cenestésica" não como uma alucinação visual nem como um fenômeno visual de
qualquer tipo, mas como a projeção exterior objetivante das sensações
cenestésicas. Assim tem lugar a duplicidade da pessoa sensível. Este duplo
sensível pode ser revestido dos atributos atuais exteriores ou dos atributos
morais. López Ibor (1957 e 1966) analisa estes conceitos de Sollier à luz de
sua concepção e distingue uma experiência primária e una experiência
secundária.
"A
experiência primária de estranhamento, tem um caráter compacto, simples e
unitário e está referido ao ‘eu' corporal. O processo secundário, de
revestimento, por parte do indivíduo da experiência primária, é o que tem lugar
nos casos complicados".
Esta
simples e clara formulação do problema permite suspeitar que muitos dos casos
referidos pelos respectivos autores como alucinação heautoscópica, pertencem
realmente à despersonalização heautoscópica. A alucinação ou a pseudoalucinação
visual representa um elemento sobreposto secundariamente à experiência
primária de despersonalização corporal.
A
despersonalização heautoscópica está vinculada à vivência de angústia. López
Ibor (1950 e 1966) se refere a estes vínculos: "A angústia consiste na
experiência da ameaça da dissolução do eu, que pode realizar-se em vários
planos, e um deles é o de sua fusão com a corporeidade. Na experiência
angustiosa aguda todos os planos se recorrem rapidamente, e o que o indivíduo
sente é a angústia sem saber o porquê, isto é, sem um sistema de referência.
Quando a experiência se desenvolve mais lentamente, oferece sua autonomia
interna, e uma de suas regiões topográficas está constituída peIa fusão do
"eu" com a imagem corporal. Na ameaça da dissolução, esta - a imagem
corporal - se aliena, converte-se em algo estranho, às vezes como totalidade,
às vezes como parte, segundo o "eu" se sinta total ou parcialmente
ameaçado. Por isso, o paciente diz: "Este corpo não é meu", e ao lhe
contestarmos, modifica sua expressão dizendo: "Como se não fosse
meu."
As
descrições da heautoscopia que se baseiam, a meu ver erroneamente, na noção do
esquema corporal, supervalorizaram a participação genética do mecanismo
vestibular. Esta supervalorização se deriva da identificação das vertigens
timopáticas ou subjetivas dos pacientes com heautoscopia, como vertigens
vestibulares ou objetivas. Nas vertigens vestibulares o que está alterado é a
percepção do espaço. Nas vertigens timopáticas (ansiedade patológica), a
representação do espaço. "Seus casos, diz López Ibor, referindo-se a
Bonnier, que foi o primeiro autor que destacou a intervenção das perturbações
vestibulares na alteração do "esquema corporal heautoscópico", mais
que exemplos de vertigens típicas vestibulares, são exemplos de vertigens
timopáticas ou agorafóbicas, idênticas no fundo à chamada por Barré anxiété
vestibulaire. Assim, tais crises vertiginosas são algo diferente que a
expressão de um distúrbio labiríntico: são equivalentes de crises ansiosas.
Angústia e vertigem são duas modalidades de apresentação do mesmo fenômeno,
como o demonstra a leitura das mesmas observações de Bonnier e a, das contidas
no livro A angústia vital, de López Ibor.
Em outras
ocasiões, a despersonalização heautoscópica se deriva de uma queda do nível da
consciência. López Ibor (1966) descreve este mecanismo genético: "Na
crise de ansiedade aguda pode observar-se certa turvação da consciência; no
pré-sonho, na aura epilética, também se acha outra forma de consciência turva
ou que esteja turvando. É natural que a consciência do eu, que é um círculo ou
setor da consciência geral, sofre o impacto desse véu que lhe cobre. Em
episódios leves da mesma, a ruptura com a realidade se manifesta como uma
espécie de estado com tendência às elaborações fantasmáticas e oniróides. A
vivência simples, em princípio, da percepção da corporeidade, se elabora a este
nível oniróide, e então os perfis do fenômeno aparecem projetados com um
tamanho monstruoso. O paciente sente seu corpo cortado peIa metade, ou algo
parecido. Também tem lugar as realizações plásticas da síndrome de despersonalização,
nas quais o pitoresco chega aos limites da credulidade.
Para
Hecaen e Ajuriaguerra (1952) os três fatores genéticos fundamentais na
heautoscopia são:
(1) a
ansiedade,
(2) os
transtornos vestibulares, e
(3) a
alteração da consciência de tipo hipnagógico.
O curioso
é que estes autores, seguindo a linha interpretativa de Menninger-Lerchenthal
(1935) consideram que a forma típica da heautoscopia é a alucinação
heautoscópica, e a forma atípica, a despersonalização heautoscópica. A
discrepância entre esta opinião e os pontos de vista aqui expostos, até o
momento, talvez se deva a que uma ampla série de alucinações, pseudoalucinações
e representações visuais do duplo não são, um sinal primário, mas que se
sobrepõe à experiência primária da despersonalização corporal.
Esta
suspeita se baseia em que a maior parte das observações de casos de visão do
duplo, referem que este duplo, ainda que mudo, mantém uma comunicação afetiva e
ideativa com o indivíduo que a vivencia. A experiência primária de
despersonalização culmina aqui secundariamente em um desdobramento sensorial
do "eu". Não tem isso nada de particular: os diversos transtornos do
"eu" exercem uma poderosa ação transfiguradora sobre as percepções.
Os exemplos estão na mente de todos: a desrealização e as mudanças na
percepção do próprio corpo que temos, do corpo como objeto, são derivações da
despersonalização; a metamorfose persistente da imagem corpórea de si mesmo
pode acompanhar à quebra da identidade do "eu"; uma metamorfose
intermitente e parcial (de alguns traços corporais) acontece em certos momentos
da duplicação do "eu" integral, da perda da unidade do
"eu".
Por outro
lado, a experiência de estranheza do "eu" corporal, elemento definidor
da despersonalização heautoscópica, implica uma ruptura da unidade do
"eu". Esta ruptura pode continuar regular ou irregularmente a
hipotética linha de articulação entre o "eu" corporal e o
"eu" psíquico. Se a segue regularmente, só se desdobra a corporeidade.
Se a ruptura, pelo contrário, segue uma linha irregular, a duplicação afeta à
corporeidade e ao "eu" psíquico: na vivência do duplo se incrustam
alguns fragmentos da própria vida psíquica do indivíduo. Em qualquer caso,
estes transtornos do "eu" tendem a forçar ao indivíduo a
materializar visualmente o duplo.
A
impressão experimentada por um indivíduo normal ou com um transtorno psíquico
sobre a presença de alguém em sua proximidade é descrita por Parhon-Stefanescu
e Procopiu-Constantinescu (romenos) (1967) como "impressão de
presença". A fadiga, o isolamento e os estados afetivos negativos, como a
tristeza e a ansiedade, integram a etiologia deste fenômeno nos indivíduos sem
transtorno psíquico. Os indivíduos normais, geralmente, estão convencidos de
que a impressão de presença não corresponde à realidade. Nos pacientes
psíquicos, a impressão de presença pode acompanhar-se ou não da crença na
realidade da existência de certas pessoas em suas imediações. A impressão de
presença acompanhada da firme certeza sobre a realidade da mesma deve ser
considerada, quase sempre, como uma inspiração delirante da variedade chamada
por Jaspers de "cognição delirante".
O delírio
do próprio sósia (vide artigo na RedePsi) representa um fenômeno de transição
entre a vivência delirante heautoscópica e o delírio de sósia alheio. A presença,
intuída ou vista, do duplo de si mesmo no espaço objetivo é o sinal comum ao
delírio do próprio sósia e à heautoscopia. As diferenças entre ambos os
fenômenos são qualitativas e absolutas. No plano descritivo: o duplo
heautoscópico é "inventado" peIo indivíduo, enquanto que o duplo do
delírio dos sósias é o produto de um falso reconhecimento: uma paciente de
Dietrich (1962) acreditava que as mulheres que passeavam peIa rua eram seu
próprio duplo, e outro, de Gluck (1946) dava a outras pessoas sua própria
identidade. No plano fenomenológico: a vivência delirante heautoscópica é uma
inspiração, ou intuição, delirante, enquanto que o delírio do próprio sósia -
da mesma forma que ao sósia alheio, que é muito mais freqüente - pode ser uma
percepção delirante ou uma interpretação deliróide.
A
diferença entre o delírio do próprio sósia e o delírio de sósia alheio ou
síndrome de Capgras; em troca, tem um significado escasso e alude exclusivamente
ao conteúdo da vivência; vale dizer, que o duplo vivenciado seja o do próprio
indivíduo ou o de outra pessoa. Em ambos os casos tratam-se de um falso
reconhecimento que pode ter a estrutura vivenciaI da interpretação deliróide ou
da percepção delirante. A pessoa objeto do falso reconhecimento no delírio do
sósia alheio pode ser uma pessoa conhecida. O falso reconhecimento que
constitui o delírio do próprio sósia, em troca, se refere sempre a uma pessoa
desconhecida para o indivíduo que vivencia o fenômeno.
A
casuística dos fenômenos heautoscópicos já é bastante extensa e abarca um
setor de pessoas sadias e outro de doentes mentais. Como agentes responsáveis
da apresentação da heautoscopia nos sãos, figuram: a introspecção, a fadiga, o
pré-sonho, os sonhos, os rápidos deslocamentos para cima ou para baixo em um
elevador, por implicar, segundo Menninger-Lerchenthal, um transtorno da função
vestibular, e, em casos recolhidos por Lhermitte (1951) de "heautoscopia
voluntária".
A
experiência heautoscópica pode apresentar-se nos seguintes campos nosológicos:
neuroses dissociativas (histéricas), neuroses de diferentes tipos, círculo
timopático, psicoses esquizofrênicas, epilepsias, paralisia geral (sífilis),
encefalites, meningites, atrofias cerebrais, alterações cerebrovasculares,
lesões cerebrais focais, transtornos pós-traumáticos, doenças infecciosas
(sobretudo a febre tifóide, o tifo exantemático e a "gripe"), intoxicações
(por álcool, cocaína, heroína, haxixe e mescalina) e a cegueira por atrofia
óptica (Conrad,
1953).
A
topologia das lesões cerebrais focais e das epilepsias que podem condicionar
uma experiência heautoscópica, segundo Hecaen e Ajuriaguerra, está
especialmente vinculada às regiões basais e à região parieto-occipital. Contra
a opinião de Menninger-Lerchenthal (1935) de que a heautoscopia aparece
preferentemente, mas não exclusivamente, nas lesões focais do hemisfério
direito, sobretudo da região parietal, Hecaen e Ajuriaguerra (1952),
baseando-se em sua experiência, não admitem essa Iateralização hemisférica, e
Hecaen e Green (1957) e Leischner (1961) indicam que tanto as lesões temporais
como as parietais podem produzir heautoscopia.