A Neurofisiologia da Dissociação e
da Doença Crônica
Robert c. Scaer
(2001)
Resumo
A dissociação, enquanto condição
psiquiátrica clínica, tem sido primariamente definida em termos da fragmentação
e cisão da mente e da percepção do self e do corpo. Suas manifestações clínicas
incluem percepções e comportamentos alterados, tais como desrealização,
despersonalização, distorções na percepção do tempo, espaço e corpo, e
conversão histérica.
Usando como exemplo modelos animais, e as
características clínicas da “Síndrome do efeito chicote”, desenvolvemos um
modelo de dissociação ligado ao fenômeno de congelamento/imobilidade. Também,
empregando conceitos atuais da psicobiologia do transtorno de estresse de
pos-traumático (TSPT), propomos um modelo de TSPT relacionado com a disfunção
cíclica do SN autônomo, deflagrada e mantida pelo modelo laboratorial de
“ativação cíclica” (kindling) e perpetuada através de um profundo grau de
aumento do tono vagal dorsal e pelo sistema de recompensa endorfinérgica.
Por sua vez estes eventos fisiológicos contribuem com o estado clínico da
dissociação. A desregulação autonômica resultante é apresentada como o
substrato para um grupo variado de doenças crônicas de origem desconhecida.
Palavras chave:
Sistema nervoso autônomo; Conversão;
Dissociação; “ativação cíclica” (Kindling); RSD (distrofia simpático reflexa)
Nota do autor:
Publicado em: Applied Psychophysiology
and Biofeedback, (2001), 26(1), 73-91, baseado numa apresentação na 31ª reunião
anual da Association for Applied Psychophysiology and Biofeedback, 29-April 2
de março de 2000, Denver, CO.
Endereçar correspondência para:
Robert C. Scaer, MD /372 Brook Circle / Boulder, CO 80302 /Te(303) 544-0717 /
E-mail: scaermdpc@aol.com
Robert C. Scaer, MD /372 Brook Circle / Boulder, CO 80302 /Te(303) 544-0717 /
E-mail: scaermdpc@aol.com
Durante
as últimas duas décadas do século 19, os psiquiatras de Europa começaram a
explorar e definir o comportamento estranho manifestado por pacientes
classificados na categoria diagnóstica de histeria. Pierre Janet, em
Salpetriere, descreveu a dissociação como uma fobia de recordações, expressa na
forma de respostas físicas excessivas ou inapropriadas, diante dos pensamentos
ou recordações de traumas antigos (a Janet, 1920). Depois de visitar Janet,
Freud adotou muitos destes conceitos de dissociação como uma divisão da
consciência, freqüentemente associada com sintomas e manifestações físicas
estranhas, e finalmente atribuiu tais sintomas de seus pacientes histéricos a
uma história de abuso sexual na infância (Freud, 1896).
A
evolução do conceito de dissociação levou à descrição de uma constelação de
variadas manifestações clínicas a ele atribuídas, incluindo percepções
alteradas da sensação física, tempo, memória, e das percepções do self e da
realidade. Expressões complexas destes estados incluíam Transtorno de
conversão, estados de fuga e personalidades múltiplas (transtorno
dissociativo de identidade) (Freud & Breuer, 1953, Mayer-total,W., 1935,
Spiega & Cardena, 1991, Bremner, al de et, 1992). Assim o conceito de
dissociação evoluiu para incluir não só aberrações mentais e emocionais,
como também experiências perceptuais e motoras e expressões somáticas incomuns
e estereotipadas.
Todos
estes sintomas e comportamentos eram considerados seqüelas de traumas
anteriores na vida. Considerava-se que o mecanismo básico de dissociação era
envolver e isolar as partes cindidas da memória ou da percepção, para escapar
da intolerável ansiedade ativada por essas áreas da mente que retinham os
elementos do conflito traumático. O alívio daquele conflito pela dissociação
histérica resultaria no alívio da ansiedade, provocando às vezes a aceitação
aparentemente blasé de condições físicas incapacitantes (“la belle
indifference”).
Freud
entretanto, logo começou a revisar seus conceitos de histeria, e em 1925 tinha
se retratado das teorias sobre a relação da histeria e a dissociação com
traumas de infância (Freud, 1959). Ele atribuiu às estórias de abuso sexual na
infância das pacientes histéricas à fabricação, baseada em desejos sexuais
inaceitáveis e fantasias que elas não podiam reconhecer. Como resultado, o
papel do trauma de infância na etiologia da dissociação foi basicamente
ignorado durante décadas.
A
introdução do diagnóstico de Transtorno de estresse pos-traumático (TSPT) no
Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais, 3ª edição (DSM III) em
1980 também resultou na reclassificação de muitas das condições antes
atribuídas a trauma e dissociação, e em alguns casos se ignorou a associação
delas com traumas anteriores de vida (Associação Psiquiátrica Americana, 1980).
Van der Kolk et al (1998) notaram que, no DSM IV, são incluídos sintomas de
dissociação sob categorias diagnósticas não só de TSPT, mas também de
Transtorno de estresse Agudo, Transtorno de Somatização e Transtorno
Dissociativo propriamente dito, (van der Kolk, et al, 1998). De fato, no DSM
IV, o Transtorno Dissociativo não inclui o Transtorno de Conversão, que foi
colocado agora como Transtorno Somatoforme.
Desde
o DSM III, o diagnóstico de histeria não existe em nenhuma parte. Van der Kolk
et al (1998) fez um esforço no sentido de que a dissociação, a somatização e a
desregulação afetiva fossem considerados expressões resultantes do trauma,
mesmo na ausência de outros critérios para o diagnóstico de TSPT. Neste sentido
eles ecoam as preocupações de Nemiah (1995), quem nota que os diagnósticos de
TSPT, Transtorno de conversão e Dissociação estão conectados pelo processo
comum da própria dissociação, e que a sua disparatada colocação em categorias
diferentes do DSM IV inibe a investigação da psicodinâmica do trauma.
Esta
tentativa de voltar aos conceitos de uma resposta relativamente ampla do
organismo ao estresse traumático é crítica na nossa consideração da
neurofisiologia do trauma e seus efeitos, não somente nos sistemas do cérebro e
no sistema endócrino, como também no corpo em si. Quando aceitamos o
enunciado que as expressões clínicas de uma multidão de síndromes psiquiátricas
não só derivam da condição genética, mas talvez também da experiência de vida e
seus efeitos duradouros na fisiologia do cérebro, devemos voltar ao conceito de
um “continuum” fisiológico entre muitos diagnósticos psiquiátricos.
TIPOS CLÍNICOS DE DISSOCIAÇÃO
Um
dos dilemas da classificação dos sintomas dissociativos é que eles assumem
formas e expressões muito variadas:
·
Os
sintomas podem ser emocionais, perceptuais, cognitivos ou funcionais.
· Os sintomas podem
envolver a percepção alterada do tempo, espaço, senso de self e realidade.
·
As
expressões emocionais podem variar do pânico até o entorpecimento e catatonia.
· As percepções
sensórias alteradas podem variar da anestesia e analgesia até a dor
intolerável.
· As expressões
motoras freqüentemente envolvem fraqueza, paralisia e ataxia, mas também podem
se apresentar como tremores, disartria, sacolejos e convulsões (veja a
discussão sobre a reação de conversão, mais adiante).
·
Os
sintomas cognitivos podem envolver confusão, disfasia, discalculia e déficits
severos de atenção.
· Os sintomas
perceptivos incluem negação e negligência.
· As alterações de
memória podem aparecer como hipermnésia na forma de flashbacks, ou como amnésia
na forma de estados de fuga ou de amnésia traumática mais seletiva.
· Assim, os
variados sintomas da dissociação refletem a natureza bipolar intrínseca dos
sintomas que definem o TSPT (ativação-revivência-entorpecimento-evitação).
· A percepção do
tempo é freqüentemente muito alterada, geralmente caracterizada por um senso de
lentificação (Terr, 1983).
· A percepção
alterada do self (despersonalização) pode se manifestar como uma experiência de
estar fora do corpo, ou um senso de intensa familiaridade (de ja’vu) (Pynoos,
al de et, 1987). Em sua expressão mais extrema, a despersonalização pode se
manifestar pela percepção de vários estados de self separados na forma de
personalidades distintas (Transtorno Dissociativo de Identidade), cada uma com
características de personalidade e até mesmo atributos físicos específicos
(Mayer-total, 1935). Pessoas ou eventos estranhos podem parecer familiares,
enquanto faces e cenas familiares podem parecer estranhas ou desconhecidas.
· Recordações
anormais também constituem um fenômeno dissociativo significativo. A amnésia
simples do evento traumático é freqüente, e pode se apresentar como amnésia
completa, ou como conteúdo de memória inexato ou distorcido (Torrie, 1944,
Terr, 1983). Estados de fuga apresentam um estado extremo de amnésia,
caracterizada por períodos de tempo sobre o qual o paciente dissociativo não
tem qualquer lembrança, freqüentemente ativados pela exposição a sinais que
trazem reminiscências de um trauma anterior. Durante esse tempo, a pessoa pode
parecer distraída e não se lembrar de fatos pessoais. Mais freqüentemente, pode
parecer confusa, histriônica, socialmente inapropriada ou bizarra (Fisher,
1945).
· Talvez o sintoma
mais característico da dissociação seja o flashback. Este tipo de episódio é
distintivo porque envolve intensa ativação e reexperiencia, sintomas mais
relacionados ao TSPT agudo do que à dissociação (Mellman, & o Davis, 1985).
Durante estes episódios, que podem ser breves ou durar várias horas ou mesmo
dias, com freqüência a pessoa terá também experiências mais tipicamente
dissociativas tais como despersonalização. Os processos sensórios e a percepção
podem ser muito distorcidos. Durante os flashbacks, a pessoa pode parecer
confusa e desligada, mas depois ela pode relatar experiências sensórias e
memórias vívidas, freqüentemente associadas com intensas emoções e estados de
ativação. A exatidão das lembranças associadas pode variar em graus de validade
ou distorção.
· As reações de
conversão e histeria já não são descritas no DSM IV como transtornos de
dissociação (Associação Psiquiátrica Americana, 1994). Na realidade o DSM IV
chega ao ponto de afirmar que quando sintomas dissociativos e de conversão
acontecem no mesmo paciente, ambos os diagnósticos devem ser feitos. A base
neurofisiológica e fisiopatológica para a dissociação proposta neste artigo,
porém, demanda que a conversão seja re-introduzida como uma forma específica de
dissociação, que é muito ligada às alterações perceptuais e somáticas que são,
na realidade, características intrínsecas do processo dissociativo. O modelo
apresentado propõe que os sintomas neurológicos atípicos e os sinais que
caracterizam a conversão constituem alterações perceptivas baseadas em traumas
anteriores, e representam à mesma cisão de consciência que produz as desordens
na percepção de tempo, espaço, realidade e self apresentadas acima. Como tal a
conversão, como também outros sintomas de dissociação (analgesia, dor,
paralisia, ataques convulsivos), podem ser associados com o mesmo espectro de
fenômenos positivos e negativos relativo ao TSPT.
MEMÓRIA, TRAUMA E DISSOCIAÇÃO
Os
transtornos de memória, na forma de re-experienciar, constituem uma das
categorias diagnósticas para TSPT. Como foi assinalado acima, isso pode
aparecer na forma de hipermnesia, amnésia ou distorção da memória. Os fenômenos
de memória baseados em trauma envolvem freqüentemente a memória declarativa
(explícita, semântica), na forma de lembranças verbais e imaginárias do evento
traumático, de precisão variável. A memória declarativa, a forma de memória que
se relaciona a fatos e eventos, envolve inicialmente caminhos hipocampais e
corticais pré-frontais, tendo um papel importante na recuperação consciente de
eventos relacionados ao trauma. Também é notoriamente inexata e sujeita a
declino.
A
memória de procedimento se relaciona à aquisição de habilidades motoras e
hábitos, ao desenvolvimento de recordações emocionais e associações, e ao
armazenamento de respostas sensório-motoras condicionadas. Esta memória é
inconsciente, implícita e extremamente resistente à deterioração, especialmente
se é ligada a informações de alto conteúdo emocional ou relacionadas com
ameaças (van der Kolk, 1994). Embora a memória declarativa possa responder por
muitos dos sintomas cognitivos do TSPT baseados na alta ativação, a memória de
procedimento promove uma ligação condicionada aparentemente inquebrável que
perpetua o ciclo neural de trauma e dissociação.
Sistemas
endógenos de compensação (opiáceos) muito provavelmente contribuem com o
estabelecimento da memória de procedimento condicionada no trauma. Os
investigadores souberam por décadas que a exposição ao trauma intenso em
combate resulta freqüentemente num período prolongado de analgesia. Soldados
feridos em combate freqüentemente requerem doses de morfina muito mais baixas
do que as usadas em outros tipos de feridas incidentais (Beecher, 1946).
A
analgesia induzida pelo estresse é um fenômeno bem documentado em muitas formas
de estresse traumático (van der Kolk, Greenberg, Orr & Pittman, 1989). A
liberação de endorfinas na hora do estresse agudo traz um benefício especial
para a sobrevivência. Um animal que, por causa da dor, se dedicasse a cuidar
suas feridas no momento em que acontece um ataque agressivo e ameaçador, teria
suas capacidades defensivas significantemente diminuídas. As endorfinas também
persistem durante a fase de congelamento/imobilidade, causando analgesia ao
animal que é atacado. Isto também tem um valor potencial de sobrevivência, na
medida em que a persistência da imobilidade enquanto o animal sofre feridas
dolorosas pode ajudar a deter o comportamento agressivo do predador.
Entretanto, no caso de falta de conclusão da resposta de
congelamento/imobilidade, a dissociação persistente recorrente com compensação
endorfinérgica associada pode potencializar o reflexo de trauma “ativado
ciclicamente” (kindled). A influência das endorfinas também pode contribuir com
o fenômeno de re-atuação compulsiva do trauma (van der Kolk, 1989).
O MODELO ANIMAL
Durante
décadas foram estudados a fisiologia e o comportamento da resposta de
congelamento. O congelamento é visto habitualmente no mundo selvagem, inicialmente
como um estado de imobilidade alerta, como quando um alce assume um estado
imóvel na presença de um predador. Este estado pode preceder a fuga súbita, ou
se o alce for atacado e capturado pelo predador, pode se transformar num estado
mais profundo de congelamento, associado com uma não-responsividade aparente e
com marcantes mudanças no estado basal autonômico. A imobilidade inicial tem a
vantagem, para o animal presa, de ajudá-lo a permanecer escondido,
especialmente porque freqüentemente são necessários sinais de movimento para
eliciar o ataque do predador. Todos os animais manifestam a imobilidade alerta,
um estado chamado por Krysta (1988) de “hipnose animal”.
No
caso de ataque, quando a criatura se encontra desamparada, um nível de
congelamento diferente é eliciado, como foi notado acima. Estudos deste
fenômeno em laboratório tiveram resultados interessantes. Hofer (1970) expôs
roedores a uma variedade de estímulos relacionados com o predador, num espaço
aberto sem meios de fuga. Todos os roedores entraram num nível profundo de
congelamento que persistiu por até 30 minutos. Este estado era associado com
uma marcada bradicardia associada com arritmia cardíaca, o que sugere um
pronunciado tono vagal ou parassimpático.
Ginsberg
(1974) imobilizou pintinhos, depois permitiu a um grupo se recuperar
espontaneamente e submeteu o outro grupo, enquanto se recuperava, a cutucadas e
outros estímulos para terminar o congelamento. Estes grupos, junto com um
terceiro grupo de pintinhos que não tinham sido imobilizados, foram testados
para avaliar sua resiliência para evitar a morte por afogamento. O grupo que
não foi permitido de completar espontaneamente a recuperação da imobilidade
morreu primeiro, o grupo que não foi exposto à imobilidade morreu a seguir, e o
grupo que se recuperou espontaneamente do congelamento sobreviveu mais tempo.
Claramente a experiência de se recuperar espontaneamente do congelamento
beneficia a sobrevivência, enquanto que a impossibilidade de passar por este
processo de recuperação pareceu reduzir a resiliência diante de ameaças de
vida.
A
chave deste processo parece girar em torno do estado de desamparo ou da falta
de controle. Em experimentos de afogamento, ratos selvagens nadaram até 60
horas antes de morrer por exaustão. Outros ratos foram imobilizados nas mãos do
investigador antes de serem colocados na água, eles se afogaram em minutos. Alguns
ratos experimentaram morte súbita durante imobilidade induzida (Richter, 1957).
A resposta de congelamento é claramente associada com alto risco para o animal,
se não lhe for permitido dissipar tal congelamento espontaneamente.
Estudos
com animais em situação de choque inescapável (IS) ilustram este dilema mais
amplamente. Os animais expostos a estímulos significativos de choque num
ambiente a prova de fuga, congelam depois da exposição ao choque. A subseqüente
introdução de rotas de fuga não elicia o comportamento de fuga neles, mas
permanecem congelados e continuam exibindo desamparo (Seligman, 1975). Parecem
incapazes de aprender com as experiências novas, até mesmo com aquelas
experiências que promovem a fuga ou a sobrevivência. Entretanto, animais
expostos a um choque do qual podem escapar (ES) logo aprendem a usar a rota de
fuga e não congelam (Fanselow & Lester, 1988). O fator crítico no trauma
parece ser o grau de controlabilidade nos resultados diante da ameaça vs. o
grau de desamparo. Van der Kolk, et al, perceberam semelhanças notáveis entre a
resposta humana no trauma e a resposta animal no choque sem escape possível
(IS), e sugeriram que o choque sem escape (IS) pode ser um modelo para a
compreensão do TSPT (van der Kolk, et al,1985).
Nijenhuis,
et al (1998) apresentaram como novo modelo de dissociação em seres humanos, uma
analogia com a alteração nos comportamentos de defesa e recuperação em
animais expostos a IS (Nijenhuis, et al,1998). Neste modelo, estímulos
condicionados associados a ameaças (CS) eliciariam automaticamente uma resposta
dissociativa ou de congelamento, em lugar de uma resposta condicionada mais
específica ao estímulo. Assim, a dissociação persistente incitaria o animal, ou
o ser humano, a continuar congelando ou dissociando diante de uma gama cada vez
mais extensa de estímulos que poderiam ser associados com ameaça.
Levine
(1997) leva o modelo filogenético um passo mais adiante, comparando a falta de
recuperação do congelamento ou resposta de imobilidade, com a retenção da
energia que fica armazenada e não descarregada toda vez que a resposta de
luta/fuga é truncada. Um estado continuo de estimulação simpática conduz aos
sintomas baseados na ativação e a sintomas de memória que se apresentam no
trauma e no TSPT. Ele atribui a tendência para traumatização nas espécies
humanas à influência inibitória de centros neo-corticais selecionados, que
bloqueiam a capacidade instintiva que outras espécies animais possuem, de
“descarregar” esta energia contida. Notando que quando os animais emergem da
imobilidade freqüentemente manifestam respostas motoras repetitivas, quase como
um ataque convulsivo, ele postulou que estas respostas motoras estereotipadas
podem permitir a conclusão bem sucedida das seqüências motoras de fuga ou
defesa, promovendo assim uma descarga enérgica.
No
modelo animal, então, a dissociação parece ter muitas semelhanças com o
comportamento de animais nos quais o congelamento foi eliciado, numa situação
de desamparo, e a subseqüente recuperação espontânea da imobilidade foi
impedida. Além disso, a dissociação também pode ser associada com uma
tonicidade predominantemente parassimpática, uma capacidade cognitiva e de
aprendizagem prejudicada e uma tendência para a perpetuação do condicionamento.
TRAUMA E
DISSOCIAÇÃO: O MODELO “EFEITO CHICOTE” (WHIPLASH)
Previamente
apresentamos a hipótese que a Síndrome do “Efeito chicote” (Whiplash Syndrome)
constitui um modelo de traumatização em lugar de um dano físico, e que muitos
de seus sintomas e manifestações clínicas são, na realidade, respostas
universais frente a uma ameaça de vida num estado de desamparo (Scaer, 1997,
1999, 2001). Esta hipótese surgiu baseada na ocorrência de dissociação na hora
de acidentes de automóvel (MVA. motor vehicle accident) com sintomas de
entorpecimento e de um estado alterado de consciência freqüentemente atribuídos
à concussão pela batida. Podemos compreender os sintomas clínicos subseqüentes
nos baseando em teorias de como acontece à ativação cíclica límbica (kindling)
no desenvolvimento do ciclo de ativação da memória no TSPT (Goddard, et al,
1969, Post, Weiss & Smith, 1995, Miller, 1997).
Em
experimentos com ratos, “kindling” é o nome dado ao fenômeno do desenvolvimento
progressivo de circuitos neurais auto-perpetuados, produzidos por uma
estimulação cerebral elétrica regional, com tempo e freqüência repetitivos
(Goddard, et al, 1969). A expressão comportamental da “ativação cíclica” (kindling)
pode incluir convulsões epilépticas, mas também é considerado mais amplamente
como um modelo para várias síndromes clínicas, inclusive TSPT.
Os
caminhos neurais envolvidos no processo de aquisição desta resposta fisiológica
de “ativação cíclica” diante da ameaça, provavelmente englobam uma série de
eventos envolvendo primariamente o locus coeruleus, a amígdala, o tálamo,
hipocampo e o córtex órbito-frontal direito (van der Kolk, 1994). Estímulos
excitatorios partindo de uma variedade de órgãos sensórios, especialmente da
cabeça e do pescoço, são transmitidos ao tálamo e locus coeruleus O locus
coeruleus então se comunica com o tálamo e a amígdala, que avalia esta
informação pelo seu conteúdo emocional. A amígdala transmite esta informação ao
hipocampo, centro da memória declarativa, que estabelece um contexto cognitivo
para a informação. Estes dados são depois transmitidos para o córtex
órbito-frontal direito (COF), que organiza a resposta cortical e autonômica
apropriada, baseado nas implicações da informação sensória para a
sobrevivência. O COF funciona como um mestre regulador para a organização da
resposta do cérebro diante da ameaça. O desenvolvimento inadequado do COF,
decorrente de uma experiência maladaptativa infantil ou de lesões cerebrais, pode
resultar numa modulação defeituosa desta resposta à ativação (Schore, 1994).
Um
controle regulador adicional é fornecido pelo córtex cingulado anterior, um
centro que, enviando um sinal inibitório à amígdala, pode prover uma função de
controle e inibir o condicionamento de medo (Morgan, et al, 1995). Por meio de
uma intensa descarga adrenérgica deflagrada quando há um forte estímulo
ativador, o locus coeruleus inibe o córtex cingulado anterior e o COF, inibindo
assim a função de controle e modulação destes dois centros. Isto por sua vez
permitiria a exposição da amígdala a sinais intensos de ativação interna e
externa, promovendo a “ativação cíclica” (kindling) de caminhos que
produzem a síndrome clínica de TSPT (Hamner, 1999).
A
dissociação na hora do trauma é o sinal primário do desenvolvimento posterior
de TSPT (van der Kolk & van der Hart, 1989). Indivíduos que ativamente
dissociam na hora de um evento traumático são muito mais propensos a
desenvolver sintomas subseqüentes de TSPT do que aqueles que não dissociam
(Bremner, et al,1992, Holen, 1993, Cardena & Spiegel, 1993). As crianças
são especialmente propensas a dissociar na hora de uma experiência traumática,
por isso pessoas com uma história de traumas passados, especialmente abusos na
infância, são mais suscetíveis a ativação, congelamento e re-traumatização
depois de expostas até mesmo a ativações não especificamente traumáticas (Kolb,
1987).
Na
hipótese de “efeito chicote” (whiplash), a recuperação espontânea da
dissociação, ou congelamento / imobilidade no momento de impacto traumático
freqüentemente não acontece, baseado na premissa que envolvimento em um MVA é por sua própria
natureza, um modelo de desamparo. A possibilidade de ocorrer dissociação será
muito maior se houver uma história anterior de trauma e dissociação. Este
estado alterado da memória, da percepção e da função autônoma, pode
potencializar a ativação cíclica (kindling) entre os centros da memória e da
ativação (amígdala, hipocampo, locus coeruleus) que descrevemos acima. O “looping”
de ativação cíclica resultante, auto-gerado e auto-mantido, servirá então como
substrato para o desenvolvimento do TSPT clínico.
Os
caminhos neurais envolvidos no processo de aquisição desta resposta fisiológica
de “ativação cíclica” diante da ameaça, provavelmente englobam uma série de
eventos envolvendo primariamente o locus coeruleus, a amígdala, o tálamo,
hipocampo e o córtex órbito-frontal direito (van der Kolk, 1994). Estímulos
excitatorios partindo de uma variedade de órgãos sensórios, especialmente da
cabeça e do pescoço, são transmitidos ao tálamo e locus coeruleus O locus
coeruleus então se comunica com o tálamo e a amígdala, que avalia esta
informação pelo seu conteúdo emocional. A amígdala transmite esta informação ao
hipocampo, centro da memória declarativa, que estabelece um contexto cognitivo
para a informação. Estes dados são depois transmitidos para o córtex
órbito-frontal direito (COF), que organiza a resposta cortical e autonômica
apropriada, baseado nas implicações da informação sensória para a
sobrevivência. O COF funciona como um mestre regulador para a organização da
resposta do cérebro diante da ameaça. O desenvolvimento inadequado do COF,
decorrente de uma experiência maladaptativa infantil ou de lesões cerebrais,
pode resultar numa modulação defeituosa desta resposta à ativação (Schore,
1994).
Um
controle regulador adicional é fornecido pelo córtex cingulado anterior, um
centro que, enviando um sinal inibitório à amígdala, pode prover uma função de
controle e inibir o condicionamento de medo (Morgan, et al, 1995). Por meio de
uma intensa descarga adrenérgica deflagrada quando há um forte estímulo
ativador, o locus coeruleus inibe o córtex cingulado anterior e o COF, inibindo
assim a função de controle e modulação destes dois centros. Isto por sua vez
permitiria a exposição da amígdala a sinais intensos de ativação interna e
externa, promovendo a “ativação cíclica” (kindling) de caminhos que
produzem a síndrome clínica de TSPT (Hamner, 1999).
A
dissociação na hora do trauma é o sinal primário do desenvolvimento posterior
de TSPT (van der Kolk & van der Hart, 1989). Indivíduos que ativamente
dissociam na hora de um evento traumático são muito mais propensos a
desenvolver sintomas subseqüentes de TSPT do que aqueles que não dissociam (Bremner,
et al,1992, Holen, 1993, Cardena & Spiegel, 1993). As crianças são
especialmente propensas a dissociar na hora de uma experiência traumática, por
isso pessoas com uma história de traumas passados, especialmente abusos na
infância, são mais suscetíveis a ativação, congelamento e re-traumatização
depois de expostas até mesmo a ativações não especificamente traumáticas (Kolb,
1987).
Na
hipótese de “efeito chicote” (whiplash), a recuperação espontânea da
dissociação, ou congelamento / imobilidade no momento de impacto traumático
freqüentemente não acontece, baseado na premissa que envolvimento em um MVA é por sua própria
natureza, um modelo de desamparo. A possibilidade de ocorrer dissociação será
muito maior se houver uma história anterior de trauma e dissociação. Este
estado alterado da memória, da percepção e da função autônoma, pode
potencializar a ativação cíclica (kindling) entre os centros da memória e da
ativação (amígdala, hipocampo, locus coeruleus) que descrevemos acima. O
“looping” de ativação cíclica resultante, auto-gerado e auto-mantido, servirá
então como substrato para o desenvolvimento do TSPT clínico.
De um
ponto de vista somático, a memória de procedimento ou condicionada por
estímulos sensoriais e as respostas motoras aos eventos físicos associados com
o acidente, também serão incorporados nessa resposta de ativação cíclica do
trauma. Num evento de grande ativação e ameaça, pode ser necessária apenas uma
experiência para que a resposta condicionada se estabeleça. Assim experiências vestibulares,
oculares e sensório-motoras do acidente serão impressas na memória de
procedimento através do condicionamento traumático operante. Então estas
percepções serão subseqüentemente eliciadas de forma exata por lembranças,
flash-backs, pesadelos, assim como também por sinais internos e externos
reminescentes do MVA. Todos os elementos da síndrome de pós-concussão -
vertigem, obscurecimento da visão, zumbido, dor de cabeça, dor miofascial -
passam a ser sintomas precipitados por sinais e estímulos baseados em memórias,
e eventualmente por uma gama cada vez mais ampla de eventos não específicos
baseados na ativação. A dor miofascial provavelmente representa uma memória de
procedimento do reflexo motor defensivo específico e do correspondente padrão
proprioceptivo, que foram precipitados pelo movimento do corpo no MVA, e depois
passam a ser eliciados pelo estresse ou por qualquer padrão de movimento
reminescente do acidente, na forma de tensão e espasmo muscular. Disfunções
cognitivas podem aparecer e piorar, tal como já foi bem documentado quanto aos
déficits de atenção e memória na Dissociação e TSPT (Gill, et al, 1990,
Alexander, 1992, Miller, 1992, Bremner, et al, 1993, Grigsby, et al, 1995).
Nenhum destes sintomas, de ordens diversas, requerem que ocorra lesão no tecido
para vir a acontecer.
Esta
hipótese depende da ocorrência de dissociação, contribuindo com uma resposta
não resolvida de congelamento, como resultado de uma ameaça de vida em
condições de desamparo. A ativação cíclica (kindling) resultante, incorporaria
então não apenas os centros de memória e ativação acima mencionados, como
também os centros que provêem a informação sensória do MVA (visual, audítiva,
vestibular, e receptores sensórios proprioceptivos), e os centros motores que
organizaram a resposta defensiva (cerebelo, tronco encefálico, ganglio basal,
córtex motor). A ativação cíclica (kindling) e a dissociação explicariam a
preocupante tendência dos sintomas da “Síndrome do chicote” (whiplash) a serem
resistentes à maioria das formas de terapia física, a persistirem
indefinidamente em muitos casos e a piorar dramaticamente em situações de
vida estressantes. A proposta também incorpora os sintomas somáticos às teorias
básicas de TSPT e dissociação, levando a uma definição somática da dissociação,
que é o tema central deste artigo.
O SISTEMA NERVOSO AUTÔNOMO NA DISSOCIAÇÃO
Pacientes
com TSPT crônico passam ciclicamente por níveis exagerados de ativação e
evitação, pânico e entorpecimento, terror e confusão. O panorama de sintomas
autonômicos inclui palidez e enrubecimento, náusea, câimbras abdominais e
diarréia, taquicardia e tonturas, suores e arrepios. Os critérios do DSM IV
para TSPT (ativação, re-experiencia, evitação) reflete um ciclo dramático de
humor que vai do pânico, hipervigilância e irritabilidade, para o
entorpecimento, o recolhimento e a frieza afetiva. Sinais fisiológicos do TSPT
no DSM IV incluem taxas de pulsação, respostas electromiográficas e
electrodérmicas, todas elas indicativas de simpaticotonia. O papel do aumento
cíclico do tono ou da função parassimpática no trauma, entretanto, foi
largamente negligenciado. O TSPT é na realidade uma síndrome bipolar, que
reflete uma instabilidade autonômica cíclica notável, com padrões de elevada
ativação simpática que alternam às vezes com uma clara e dramática dominância
parassimpática. Foram estudados fenômenos oscilatórios em uma variedade de
sistemas biológicos e foram documentados em várias publicações. Muitos
subsistemas fisiológicos (endócrino, autônomo, neuro-humoral) operam de forma
bimodal baseados numa variedade de influências fisiológicas rítmicas, sejam
estas ambientais ou internas. Antelman et al (1997) propuseram que a exposição
de tais sistemas a estressores químicos ou comportamentais de intensidade
suficiente pode induzir padrões cíclicos de aumento e diminuição, em resposta a
cada exposição subseqüente (Antelman, et al, 1996, Antelman & Caggiula,
1996). Este fenômeno parece ser aplicável a uma tal variedade de sistemas
fisiológicos que os autores concluíram que a oscilação em resposta a estímulos
químicos ou comportamentais pode representar um princípio geral de
funcionamento biológico (Antelman, et al, 1997). Pode se tratar de um reflexo
biológico inato projetado para restabelecer a homeostase, a flutuação rítmica e
equilibrada dos sistemas biológicos, seja o endócrino, neurofisiológico,
metabólico ou imunológico (Antelman et al, 1997).
No
TSPT, pela dissociação peritraumática não resolvida, estímulos internos e
externos impactam os circuitos neurais centrais que intermedeiam a memória e a
ativação, assim contribuindo com a ativação cíclica (kindling), e conduzindo a
estressores internos dos subsistemas neurais associados, especialmente o
sistema nervoso autônomo. Por este modelo, o resultado será uma deficiência
orgânica autonômica cíclica, assim como a aparição dos muitos e dramáticos
sintomas autonômicos divergentes que vemos nas vítima de trauma. Assim,
períodos de ativação simpática incluirão sintomas de contração muscular,
bruxismo, divergência ocular, taquicardia, suores, palidez, tremor,
sobressalto, hipervigilância, pânico, raiva e constipação. Estes estados
alternarão com dominância parassimpática, incluindo sintomas de palpitações,
náusea, vertigem, indigestão, câimbras abdominais, diarréia e incontinência.
Embora muitos destes sintomas sejam atribuídos freqüentemente a transtornos de
somatização, eles na realidade representam o extremo da disfunção autonômica
cíclica que encontramos no trauma, são inerentemente auto-perpetuados e
contribuem a continuação da oscilação da autonômica anormal. Assim, a síndrome
do trauma literalmente toma controle do corpo.
Como
a “ativação cíclica” no TSPT continua e se torna crônica, a evitação e retração
ficam cada vez mais proeminentes, freqüentemente com uma diminuição dos
sintomas de ativação, hipervigilância e fobia. Neste ponto, os critérios
baseados no DSM IV de TSPT não mais justificam o diagnóstico, e os pacientes
recebem normalmente o diagnóstico de Transtorno de somatização, Transtorno
dissociativo, conversão ou depressão. Com o tempo, o papel do trauma na
síndrome do paciente pode ser ignorado. Embora a oscilação autonômica ainda é
visível, fica claro que o complexo de sintomas prevalentes reflete um estado de
dominância parassimpática.
Medidas
endocrinológicas agora tendem a mostrar um estado de baixo cortisol (Mason, et
al, 1986, Yehuda et al, 1990), congruente com a evolução do tônus
parassimpático. Esta tendência é associada a respostas comportamentais que
incluem isolamento social e retração, abuso de substâncias, afeto retraído,
negação, disfunções cognitivas e dissociação, todos estados relativamente
parassimpáticos.
Outra
forma de compreender este processo pode ser tirada do papel filogenético do
sistema nervoso parassimpático, especificamente do sistema vagal, como
apresentado na Polyvagal Theory of Emotion by Porges (1995). Porges enfatiza a
estrutura filogenética de formação de camadas de respostas à ativação em
mamíferos, baseadas nas funções variadas dos núcleos vagais. O complexo dorso
vagal (CDV), composto do núcleo dorsal motor do vago e núcleo do trato
solitário, é um vestígio evolutivo e um centro primitivo, principalmente útil
em répteis, para a conservação de energia. No sistema de baixa demanda de
oxigênio no réptil, o CDV fecha o sistema de uso da energia induzindo marcada
bradicardia e apnéia, como no reflexo reptiliano de mergulho. O complexo
ventral vagal (CVV) dos mamíferos é uma adaptação recente para atender a alta
necessidade de oxigênio desta classe de animais, regulando finamente utilização
de energia pelas influências sutis e flexíveis do batimento cardíaco. A
resposta inicial de alerta tal como é vista em animais, consiste em levantar a
cabeça do pasto, se orientar com a cabeça em direção à fonte do novo estímulo
potencialmente ameaçador, alargando a fissura das pálpebras e farejando os
cheiros. Este reflexo conservador de energia é mediado pelo CVV, e emprega o
locus coeruleus, que tem conexões ricas com os órgãos sensoriais da cabeça,
como também os músculos da cabeça e do pescoço. Se por este reflexo for obtida
informação ameaçadora suficiente, a resposta de CVV será inibida e o animal
progredirá para os mecanismos neuromusculares e cardiovasculares da resposta de
luta/fuga, baseados na epinefrina. Se o impedimento da ameaça via defesa (luta)
ou fuga falhar, o animal entra num estado de desamparo, associado com um
aumento considerável do tônus CDV, iniciando a resposta de
congelamento/imobilidade. Este estado de profundo tônus parassimpático é
associado com uma marcada bradicardia, apnéia, relaxamento dos esfíncteres e
ativação gastrointestinal.
Um
estado persistente de ativação de CDV é comum nos répteis, mas é de fato
perigoso para os mamíferos devido a sua associação com marcada bradicardia e
arritmias que causam risco de vida. A morte espontânea de animais selvagens em
laboratório durante estados induzidos de imobilidade atesta para este perigo,
como também o faz a alta taxa de mortalidade de mamíferos selvagens que vivem
no ambiente de jardim zoológico (Seligman, 1987). Nos seres humanos, este
estado de imobilidade e “animação suspensa” talvez tenha sua expressão mais
extrema no fenômeno de morte Vodu, como descrito por Cannon (1942). O estudo de
morte na resposta de congelamento/imobilidade em animais revela que a morte
acontece por parada cardíaca durante a diástole, ou relaxamento do coração, num
estado de completa flacidez cardíaca e inundação com sangue (Richter, 1957,
Hofer,1970).
Por
tanto, os extremos de tono parassimpático vagal, tal como se manifestam no
estado de ativação CDV, contribuem muito na geração de emoções severas,
especialmente as de terror e desamparo. Embora os estados de congelamento e
imobilidade em mamíferos possam ser úteis a curto prazo para a sobrevivência, a
sua prolongação ou ativação repetida têm implicações sérias para saúde e
sobrevivência a longo prazo. O modelo de doença aqui apresentado, sugere que a
descida gradual em direção a dissociação e ao domínio parassimpático no TSPT
crônico constitui esse estado de perigo.
O MODELO ANIMAL
Como
foi sugerido anteriormente, a dissociação pode ser acompanhada de cisão ou
percepções alteradas não apenas do self e da realidade, mas também das partes
ou regiões do corpo. Nessa circunstância, a disfunção clínica experimentada
pelo indivíduo dissociado quase sempre se apresentará como déficit físico que
desafia as explicações fisiológicas dadas por exames clínicos, testes
laboratoriais ou estudos de imagem. Os diagnósticos dados por médicos nestes
estados incluem histeria, conversão e desordens psicossomáticas. Assume-se
correntemente que a causa para estes estados é psicológica, sendo o estresse o
fator comum. Quase todos déficits são de natureza neurológica, podendo afetar
qualquer sistema, incluindo o visual, auditivo, vestibular, fonador, de
equilíbrio, e a função sensorial e motora. Convulsões e desmaios são expressões
comuns deste estado.
Os
sintomas associados com conversão podem aparecer exagerados, e os resultados
não estão em conformidade com os objetivamente vistos em casos de lesões ou
doenças do sistema nervoso. Assim, a perda sensória normalmente se apresenta
numa distribuição de “meia / luva”, esparsa, em lugar da perda de dermátomos em
camadas comumente vista em lesões espinhais. A fraqueza é difusa e
inconsistente, com uma qualidade de desistência.
Freqüentemente
os sintomas são unilaterais e podem flutuar com o tempo, com tendência a
aumentar em ambientes estressantes.
Sintomas
de conversão ocorrem mais comumente em países e culturas menos desenvolvidos em
termos socioeconômicos e em mulheres (Associação Psiquiátrica americana, 1994).
De paciente para paciente e de cultura para cultura, as aparentemente variadas
síndromes de conversão têm um tema notavelmente constante que exige
consideração, um mecanismo neurofisiológico comum e ainda indefinido.
A
literatura médica não endereça esta tentativa de cruzamento entre fatores
psicológicos e fisiológicos na conversão e doenças relacionadas. Os conceitos
apresentados neste modelo estão baseado na avaliação de milhares de pacientes
que experimentaram trauma físico em acidentes com automóvel e outros tipos de
acidentes, e que, num grau variado, manifestaram também sintomas de terem sido
traumatizados. Muitos destes pacientes se apresentaram com sintomas e sinais de
conversão e, com a observação minuciosa do seu estado físico e sintomas
comportamentais, várias conclusões parecem ser inevitáveis.
Pacientes
com conversão nessas condições raramente apresentam “la belle indifference”,
mas exibem sintomas iniciais de ativação e angústia consistente com TSPT. Esses
sintomas são marcadamente comuns de paciente para paciente.
Dificuldades
com a locução e com as mecânicas da fala são comuns, com bloqueio da palavra,
gagueira e padrões de fala desarticulados e incomuns. Uma perda sensória
unilateral ou da extremidade superior é quase universal, associada com severos
problemas de destreza no mesmo lado. Esta perda sensória invariavelmente é “não
fisiológica”, freqüentemente em distribuição de luva ou meia. O equilíbrio é
prejudicado com padrões variáveis de vacilação e cambaleio ao andar,
consistente com a disfunção nos centros de equilíbrio no tronco encefálico.
Observando cuidadosamente, nota-se que muitos desses pacientes experienciam uma
sensação física de ativação quando o examinador lhes apresenta um estímulo
visual vindo de uma parte da sala, no mesmo lado dos seus sintomas
não-fisiológicos predominantes. Este padrão de ativação é geralmente
experienciado como náusea ou vertigem, e pode ser associado com enrubecimento,
sugerindo a influência da ativação CVV como parte da resposta inicial à ameaça.
O
conceito de limite perceptual periférico, em termos psicológicos, se relaciona
primariamente a áreas sutis do nosso senso de self que percebemos no
relacionamento com os outros, as regiões apropriadas de limite na interação
pessoal e social. No modelo de dissociação somática aqui apresentado, este
conceito de limites se relaciona a um todo perceptivo concretamente físico, uma
continuidade do si mesmo que representa os limites inconscientemente percebidos
que definem a área de extensão segura da nossa expressão física.
A
área que inclui este espaço é diretamente proporcional à experiência de ameaças
de vida previamente não resolvidas, e a continuidade dos limites de percepção
que cercam este espaço depende da experiência perceptiva de ameaça severa
dentro de um setor específico desse limite. Ao testar os limites de um
paciente traumatizado, os resultados revelam que a área da percepção de uma
pessoa onde ela experimentara primeiramente o sinal de uma ameaça iminente (por
ex. - o automóvel se aproximando) será depois uma área onde o acesso de
qualquer estímulo é intrinsecamente ameaçador. Como resultado, passar uma mão
em volta da periferia do campo visual daquela pessoa a uma distância de 1 metro aproximadamente,
produzirá freqüentemente uma resposta de ativação na região perceptiva da
ameaça anterior. Tais pacientes desenvolveram um reflexo de ativação
condicionado dentro das suas áreas perceptivas, dos seus limites. De maneira
previsível, experiências perceptivas e sensório subliminais persistentes no
ambiente dentro daquela região, sejam de natureza visual, tátil ou
proprioceptivas, resultarão numa ativação condicionada e perpetuarão o reflexo
de ativação cíclica (kindling). Da mesma maneira que a vítima crônica de TSPT
congelará ou dissociará em face a uma ameaça familiar, a parte ou região do
corpo que representa a memória de procedimento somática ou proprioceptiva que
corresponde à experiência de ameaça será seletivamente dissociada, dando lugar
aos sinais não fisiológicos de conversão. Não deve ser nenhuma surpresa, então,
que muitos pacientes com sinais localizados de conversão experimentem sintomas
de desconforto e ativação diante da apresentação de estímulos aparentemente
benignos, nessas regiões da sua percepção de limite que agora possuem a marca
perceptiva sensória da ameaça.
Além
disso, com a observação cuidadosa adicional de tais pacientes, podem-se
detectar mudanças físicas incomuns nas porções dissociadas do corpo deles.
Minha consciência destes fenômenos físicos começou quando uma paciente que
apresentava hemi-anestesia “histérica” no lado direito do corpo, com fraqueza e
desajeitamento, relatou que seu cabeleireiro tinha notado que os cabelos dela
cresciam mais lentamente e tinham uma textura diferente do lado direito. Observação
cuidadosa revelou que além disso, o cabelo dela estava mais escasso no lado
direito da sua cabeça. Examinando o braço e a mão direita da paciente se
observou que as unhas eram quebradiças e disformes, a mão era mais fria que a
esquerda, e o crescimento de cabelo nos dedos era menor. Com a observação
subseqüente de outros pacientes semelhantes se documentaram sinais distróficas
na pele, cabelo e unhas, nas partes do corpo que manifestavam sinais de
conversão. Finalmente, vários destes pacientes desenvolveram sinais claros de
dor simpaticotonicamente mantida, ou reflexo de distrofia simpático (RDS).
REFLEXO DE
DISTROFIA SIMPÁTICA (RDS)
A dor
mantida por simpaticotonia, a síndrome complexa regional de dor e o RDS,
incluem síndromes de dor que são bastante comuns e bem reconhecidas, mas ao
mesmo tempo controversas e pobremente entendidas e que são, por definição,
associadas com sintomas e sinais vasomotores autonômicos nas partes afetadas do
corpo. As extremidades, especialmente as porções distais, são predominantemente
afetadas. Descrita por S. Wier Mitchel na Guerra Civil, a síndrome é talvez
mais comum em feridas traumáticas nas extremidades, mas também pode acontecer
após danos aparentemente triviais tais como contusões secundárias ou danos por excesso
de uso (Mitchell, et al, 1864, Schwartzman & McLellan, 1987). A síndrome é
caracterizada por uma dor severa, freqüentemente por uma queimação na área
afetada, associada com sinais de variável disfunção vaso motora, tanto
parassimpática quanto simpática. Estes sinais podem incluir crescimento ou
perda anormal de cabelo, eritema e calor, ou palidez e frio. Com o fracasso do
tratamento e a progressão da síndrome, predominam sinais de vaso constrição e
distrofia, daí o uso do termo “simpático”. A atribuição da síndrome ao tônus
autónomo simpático anormal é apoiada, pelo menos em parte, pelo fato que a
injeção no gânglio relacionado do sistema nervoso simpático pode prover alívio
variável da dor. Muitos investigadores consideram que o sistema nervoso central
pode estar envolvido. Posturas distónicas dos membros afetados são comuns.
Estudos eletromiográficos e de condução de nervosa de RDS revelam que o caráter
dessa distonia é mais típico da contenção voluntária da postura do que as
distonias comparáveis em pacientes com lesões cerebrais (Koelman, al de et,
1999). Os autores chegam ao ponto de dizer “Na causalgia-distonia, o controle
motor central pode ser alterado por um trauma de um modo tal que o membro
afetado é dissociado dos mecanismos regulatórios normais” (pág. 2198).
O
modelo aqui apresentado propõe que a dissociação somática regional expõe a
região ou membro dissociado do corpo a uma vulnerabilidade seletiva, aos
efeitos da disfunção orgânica autonômica cíclica e oscilatória existente,
associados com as mudanças neurofisiológicas do trauma não resolvido. Neste
estado, aquela região ou parte pode ser então vulnerável a uma oscilação vaso
motora, com vaso constrição e redução funcional do fluxo sangüíneo criando
finalmente a patologia isquêmica de tecido característica do RDS. Esta
síndrome, freqüentemente abrange um espectro contínuo de expressões clínicas,
dos sinais sutis vistos na maioria dos pacientes, até a dor intensa, mudanças
distróficas e distonias do RDS. Dissociação, por este modelo, é uma síndrome
neurofisiológica originada no sistema nervoso central. É iniciada por uma
tentativa falha de defesa / fuga num momento de ameaça à vida, e perpetuada se
recuperação espontânea da resposta de congelamento resultante for bloqueada ou
truncada. A falta de recuperação desta resposta de congelamento resulta na
associação condicionada de toda a informação sensório-motora assimilada na
memória de procedimento durante o evento traumático, que será ressuscitada
posteriormente em momentos percebidos como ameaçadores, como um reflexo
condicionado de sobrevivência primitivo. Esta aquisição de memória de
procedimento é inicialmente eliciada através de sinais-estímulos específicos,
internos e externos, mas, por causa da ameaça em si mesma não ter sido
resolvida, os sinais internos persistem sem a inibição das mensagens externas
de segurança e a ativação cíclica é estimulada nos centros corticais, límbico e
no tronco cerebral, tal como foi previamente discutido. Uma recorrente
dissociação em resposta a ativação acompanha este ciclo e facilita o
desenvolvimento de uma oscilação autonômica patológica. A inibição fisiológica
da percepção dessas partes ou regiões do corpo - para as quais o cérebro mantém
uma memória de procedimento da sua contribuição sensória na hora da ameaça -
resulta na síndrome de conversão e dissociação somática regional. Divorciadas
dos benefícios tróficos[1] normais da percepção cerebral, estas
regiões ficam sujeitas aos extremos de instabilidade vasomotora do trauma
avançado, e desenvolvem síndromes de vasoconstrição patológica e isquemia,
conduzindo a RDS.
[1]
*’nutrição’; ‘que alimenta’: trófico, trofoneurose.
*
trofoneurose :alteração trófica de um tecido por influência do sistema nervoso.
AS DOENÇAS DE
TRAUMA
Selye
(1936) é geralmente creditado pelo conceito de que uma exposição excessiva ou
prolongada a estresse poderia contribuir com o desenvolvimento de um grupo de
doenças específicas. Estas doenças refletem predominantemente uma exposição a
níveis elevados de hormônios adreno-corticais, como parte do papel modulador do
cortisol no eixo hipotalámico / pituitário / adrenal (HPA) no estresse.
Assim,
ratos expostos a estresse prolongado e excessivo desenvolveram erosão da mucosa
gástrica, ateroscleroses e atrofia adrenal cortical. Outros efeitos patológicos
específicos da exposição excessiva de cortisol incluem supressão da imunidade,
lipídios elevados e ateroscleroses, diabete osteoporose, hipertensão, úlcera
péptica, obesidade e disfunções cognitivas / emocionais. Muitos destes efeitos
estão atualmente bem descritos na literatura médica e leiga como “doenças de
estresse”.
A
relação dos efeitos do trauma a longo prazo (ao invés de estresse) com a doença
é bem menos documentada. Enquanto que o estresse contínuo é facilmente
identificado, a experiência passada de traumatização é mascarada pela evolução
da síndrome resultante em experiências, sintomas e comportamentos que no final
das contas são atribuídos a causas psicológicas e caracteriais, isso é, que se
originam em eventos internos em lugar de externos. Esta percepção é basicamente
correta no sentido de que os eventos internos no trauma são autodirigidos e
capazes de mudar a fisiologia somática na ausência de influências externas.
Este conceito também está de acordo com os efeitos fisiológicos da dissociação
somática que é dirigida por mecanismos internos do cérebro que se
auto-perpetuam. Assim, não se espera que as doenças de trauma reflitam as
síndromes de estresse exógeno agudo e até mesmo crônico, baseadas em cortisol. Ao invés
disso podemos prever que as doenças de trauma irão refletir a disfunção da
regulação autônoma, tanto simpática quanto parassimpática, com a predominância
de síndromes vagais e parassimpáticas nos últimos estágios.
Este
modelo de doença no trauma poderia prever que sintomas e sinais vasomotores
seriam prováveis, com componentes tróficos e distróficos, o posterior
refletindo vasoconstrição e isquemia. É previsível disfunção cardíaca,
pulmonar, intestinal e glandular exócrina. São comuns as anormalidades de
força, tônus e resistência muscular. A diminuição do cortisol nos últimos
estágios do trauma poderia conduzir à relativa falta de inibição imune e,
portanto, a síndromes de hiper-imunidade. Podemos também esperar, em alguns
casos, períodos notáveis de exacerbação e remissão destas síndromes baseados na
oscilação autonômica, e uma sensibilidade específica à exacerbação por estresse
externo. Em muitas destas condições seria comum encontrar sintomas flutuantes
de prejuízo cognitivo, especialmente os relacionados à atenção e memória.
Esperar-se-ia
uma associação incomum de sintomas emocionais nos estágios avançados do trauma,
incluindo desregulação afetiva, dissociação, somatização, depressão,
hiper-vigilância e negação / evitação. Uma história de trauma psico-social em
muitos casos pode refletir uma história substancial de trauma de vida,
especialmente na infância.
Entre
outras manifestações, estas doenças mostrariam pelo menos em parte evidência de
um tônus parassimpático anormal, talvez junto com fenômenos ulcerativos e
distrofias vasoconstritivas simpáticas. Doenças e síndromes do sistema de
gastrointestinal que entram neste conceito geral de doenças de trauma incluem
úlcera péptica e refluxo gastro-esofagiano, síndrome de intestino irritável, a
doença de Crohn (ileiti regional) e colite ulcerativa. Todas refletem
hipermotilidade dos órgãos, secreção glandular excessiva e, em alguns casos,
características ulcerativas. Síndromes cardíacas refletiriam provavelmente
anormalidades cardíacas associadas com dominância CDV, e seriam associadas com
uma variedade de taqui - e bradi-arritmias, incluindo aquelas vistas no
prolapso de válvula mitral.
Asma
bronquial, uma síndrome que se manifesta primariamente em casos de estresse e
eventos parassimpáticos anormais, induzidos por hiperimunidade em órgãos
específicos (bronco-espasmo e hiper-secreção) atendem a muitos dos critérios
previsíveis nas doenças de trauma.
Cistite
intersticial é uma condição caracterizada por dor, espasmo e ulceração da
parede de bexiga, e combina os elementos parassimpático- distróficos de muitas
destas síndromes.
Uma
das mais desconcertantes e controversas síndromes crônicas que pode cair nesta
categoria é a fadiga crônica / fibromialgia. Os sintomas incluem difusa e
severa dor musculo-esquelética, sono disfuncional e não restaurador com fadiga
crônica, rigidez, dores de cabeça, ansiedade, hipervigilância, prejuízo
cognitivo, sintomas oculares e vestibulares e parestesias. As síndromes
associadas incluem síndrome do intestino irritável, cistite intersticial,
prolapso de válvula mitral, e disfunção no esófago (Clauw, 1995). Foi
documentada uma baixa dosagem de cortisol e disfunção do eixo HPA semelhante a
que acontece no TSPT avançado (Crofford, 1996). A síndrome de fibromialgia
afeta principalmente as mulheres e existem evidências, controversas mas
sugestivas, de uma incidência maior de trauma sexual e físico de infância em
pacientes com fibromialgia (Boisset, et al, 1995). O surgimento de fibromialgía
após uma experiência traumática foi bem documentado (Waylonis & Perkins,
1994). Enquanto reconhecemos que mesmo fortes evidências circunstanciais não
constituem prova científica médica, a fibromialgia e a síndrome de fadiga
crónica parecem se apresentar como protótipos para o modelo das doenças de
disfunção autonômica vista no trauma avançado.
A
razão para RDS ser considerada uma doença pos-traumática dissociativa
autonômica foi apresentada. A dor crônica nos casos onde não há uma patologia
estrutural documentada, muito provavelmente representa outra síndrome de trauma
avançado. A dor de membro de fantasma parece representar um protótipo para este
modelo. Esta síndrome acontece mais freqüentemente quando a amputação fica
associada com uma lesão traumática. Persistente representação de dor em um
órgão ou parte ausente do corpo sugere a existência de uma resposta
condicionada de memória de procedimento para aquela dor. O elemento crítico
para que a memória seja condicionada, é claro, é a ameaça não resolvida
associada com a lesão que produziu a dor. Temos que se lembrar que a dor severa
pode ser traumatizante em si mesma, e que o sistema médico no qual a dor foi
tratada oferece muitas fontes potenciais de estresse traumático (Scaer, 2001,
Capítulo 9). Imprinting condicionado de dor na memória de procedimento implica,
sem dúvida, que aquele trauma terá acontecido num estado de desamparo sem
oportunidade para resolução espontânea da resposta de congelamento. Nessas
circunstâncias, a dor específica continuará representando a ameaça e será
retida, para posteriores propósitos de sobrevivência, na memória de
procedimento condicionada.
Um
estado subjacente de vulnerabilidade à traumatização também seria um substrato
previsível para o desenvolvimento de dor crônica em pessoas feridas. Vítimas de
abuso infantil ou de múltiples eventos traumáticos anteriores possuem
claramente esta vulnerabilidade, e seria previsível sua suscetibilidade à
incorporar uma nova experiência dolorosa na memória de procedimento, no modelo
descrito acima. A literatura de trauma documenta amplamente a alta incidência
de muitos tipos de dor crônica encontrada em vítimas de abuso infantil,
relativa à população geral. Os tipos de dor representados nestes estudos
incluem dor pélvica, das costas, abdominal, de cabeça, dor oro-facial e dores
crônicas em geral.
Também é documentada a incidência extremamente alta de abuso
infantil em pacientes encaminhados a centros para o tratamento de dor crônica (Rapkin,
et al, 1990, Wurtele, et al, 1990, Toomey, et al, 1993, Walling, et al, I,
1994,Walling, et al, II, 1994).
Vários
estudos e modelos de doença propostos sugerem que o trauma pode contribuir em
parte com as doenças autoimunes. Como foi notado, os baixos niveis de cortisol
documentados nos casos de TSPT avançado poderiam ser relacionados com o
aumento das atividades imunes em vivo (Yehuda, et al, 1993). De fato, Watson et
al (1993) documentaram um aumento da reatividade de pele a antígenos no TSPT de
ex-combatentes (Watson, et al, 1993). Outros autores propuseram especificamente
que o estado de baixo cortisol nos casos de TSPT avançado poderia constituir o
substrato para um estado de hiperimmunidade (Friedman, & Schnurr, 1995,
pág. 518). Mais recentemente, a taxa de fenótipos linfocíticos documentada em
vítimas de abuso sexual na infância com TSPT mostrou um padrão indicativo de
ativação linfocítica. Este achado apóia a probabilidade de haver uma atividade
imune aumentada nestes pacientes, sugerindo o potencial para um estado de
hiperimmunidade no TSPT avançado (Willson, et al, 1999).
Apoiado
numa revisão de literatura exaustiva, Rothschild e Masi apresentam um argumento
forte para uma hipótese vascular para artrite reumática (RA) incorporando como
característica cardeal a vasoconstrição e hipoxia de tecido, ambas as quais
foram bem documentadas em
RA. Hypoxia da parede arterial conduz a permeabilidade
vascular com a liberação de antígenos em tecidos circunvizinhos. A resposta
imune resultante representa portanto uma característica relativamente
secundária de RA (Rothschild, & Masi, 1982). Esta teoria, apoiada numa
extensa quantidade de estudos, está de acordo com o modelo previamente
apresentado da disfunção autonômica e vasomotora como modelo para processos de
doença relacionados com trauma. Tais descobertas de forma nenhuma fornecem uma
ligação específica entre o trauma anterior e as doenças autoimunes, mas sugerem
um canal de investigação adicional da possível relação entre o trauma e os
processos autoimunes.
Talvez
um caminho mais urgente e necessário de investigação seja o relacionado com
estudos de morbidez e mortalidade no trauma. É sabido muito tempo que as
vítimas de trauma experimentam taxas aumentadas de morbidez e mortalidade
(Friedman & Schnurr, 1995). Muitos destes estudos focalizam nos problemas
de saúde de ex-prisioneiros de guerra (POW’s) (Beebe, 1975, Page, 1992).
Doenças cardiovasculares e gastro-intestinais predominam neste grupo as vítimas
de trauma anterior, embora seqüelas emocionais relacionadas com depressão e
cirrose do fígado associada a alcoolismo contribuam significativamente com a
mortalidade. Quando o diagnóstico de TSPT é acrescentado à equação, porém, os
efeitos do trauma na saúde aumentam substancialmente, com a predominância de
doenças cardiovasculares(Friedman & Schnurr, 1955, Wolff, et al, 1994).
Da
morbidez inicial intrínseca ao modelo de estresse de Selye, aos efeitos tardios
de desregulação autonômica e dominância vagal patológica, os efeitos potenciais
e reais do trauma na saúde são claros. Infelizmente, o trauma necessário para
colocar o indivíduo em risco pode ser tão sutil quanto experiências adversas na
infância. Felitti et al, (1998) acharam uma forte relação de grau entre a
amplitude de exposição a abuso ou disfuncionalidade familiar na infância e
múltiplos fatores de risco para várias das principais causas de morte em
adultos (Felitti, et al, 1998). As doenças de adulto endêmicas nos individuos
que experimentaram abuso na infância ou disfuncionalidade familiar incluíam
doença de isquémica cardíaca, câncer, doença pulmonar crônica, fraturas ósseas,
obesidade e doenças hepáticas. Adicionalmente, doenças atribuíveis ao risco por
exposição e comportamento incluindo doenças sexualmente transmitiram,
alcoolismo, abuso de droga, depressão e suicídio. Este estudo é particularmente
perturbador porque mostra que nestes casos de alta morbidez, os “traumas” de
infância eram freqüentemente tão indiretos quanto viver com membros da familia
mentalmente doentes ou viciados em substâncias. A sensibilidade e vulnerabilidade da
criança em desenvolvimento para com a falta de cuidados e de uma estrutura de
limites segura, assim como os efeitos adversos desta perda ao longo da vida na
saúde emocional e física, ficaram assustadoramente claros.
CONCLUSÃO
Nós
apresentamos um modelo de função cerebral alterada, condição precipitada por um
evento traumático cujo conclusão ou resolução foi truncada ou abortada pela
falta de resolução espontânea da resposta de congelamento / imobilidade, um fenômeno
próximo ao estado psicológico clínico de dissociação. Além do diagnóstico
psiquiátrico arbitrário de TSPT, este estado é associado com uma série complexa
de eventos somáticos patlógicos caracterizados por uma desregulação autonômica
cíclica, e um estado evolutivo de dominância vagal que envolve principalmente o
núcleo vagal dorsal. A porção simpática deste complexo fisiológico cíclico
envolve primariamente vasoconstrição, com mudanças regionais isquémicas e
distróficas, especialmente em regiões do corpo que foram sujeitas a dissociação
devido à sua representação residual de mensagens sensórias de ameaça
armazenadas na memória de procedimento. O modelo experimental de ativação
cíclica (kindling) é intrínseco à auto-perpetuação deste processo patológico,
produzido por sinais internos derivados da memória de procedimento de uma
ameaça não resolvida, e reforçado pelos mecanismos endorfinérgicos inerentes na
resposta inicial à ameaça no congelamento e dissociação subseqüentes.
Neste
contexto, é postulado que uma variedade de doenças crônicas representam
expressões somáticas tardias de estresse traumático. Estas doenças têm
expressões notavelmente variadas mas com uma linha comum de instabilidade
autonômica cíclica, freqüentemente com características sutis isquémicas e de
vaso-constrição, e normalmente com dor. Elas freqüentemente são distintas das
doenças geralmente atribuidas a estresse - embora as doenças “relativas a
estresse” aconteçam com freqüência simultaneamente – e são também mais comuns
na população de adultos que experimentaram trauma.
Este
modelo rejeita o conceito de que termos tais como “somatização”,
“conversão”, “histérica”, “psicológico” ou “psicossomático” tenham qualquer
significado viável na definição de um complexo de sintomas ou de um estado de
doença. Coloca todos esses termos no contexto das patologias somáticas,
manifestações de doença associadas com descobertas clínicas sutis, mas
definíveis e objetivas. Ultrapassa o conceito de medicina de corpo / mente em
direção ao conceito de um “continuum” corpo / cérebro / mente.
Ao
tentar isolar processos de doença psicossomáticos numa categoria distinta,
estamos talvez ignorando a causa principal do grupo de doenças que os membros
das profissões de saúde provavelmente menos entendem e tratam com menor
eficácia - as doenças crônicas de causa desconhecida. Muitas destas doenças se
devem a deficiências na regulação, em lugar da invasão de micróbios, toxinas ou
outros agentes extrínsecos. Sendo assim, elas apresentam uma oportunidade única
para os médicos, investigadores e professores na área da psico-fisiologia
aplicada e biofeedback, que lidaram com os conceitos de auto-regulação e cura
durante os últimos 40 anos. Se aceitamos os conceitos apresentados acima de dor
de miofascial, disfunção visceral, dor crônica e doenças sistêmicas como
fibromialgia, fica evidente que os médicos de bio-feedback têm estado tratando
na maioria dos seus pacientes sintomas e condições causadas primariamente por
traumas do passado. Não surpreende que suas técnicas sejam freqüentemente mais efetivas
que as técnicas poli-farmacéuticas e muitas das técnicas medicas e cirúrgicas.
A aplicação de técnicas avançadas como a regulação cerebral por neuro-feedback
e a regulação autônoma pelo controle de variação do batimento cardíaco (HRV)
pode ter implicações profundas para a cura do trauma, provendo meios únicos de
acesso às respostas autonômicas condicionadas que controlam o reflexo de
trauma.
Finalmente,
como clínicos, devemos olhar além do aparente comportamento disfuncional de
muitos destes pacientes, para a desregulação neurofisiológica e
autonómica que são a fonte dos sintomas e eventualmente da doença deles. A
ciência médica deve mudar o conceito de que um sintoma não mensurável através
da tecnologia atual é “psicológico”, e por tanto inválido. E os médicos devem
rejeitar as implicações pejorativas do termo somatização para deter a
traumatização adicional de seus pacientes pela rejeição implícita sutil.
Tradução: Irene Noemi Trajtenberg
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