quarta-feira, 16 de maio de 2012

A Heautoscopia

Adalberto Tripicchio



Introdução

Do ponto de vista literário, histórico e bibliográfico, os temas da heautoscopia e o delírio dos sósias não podem ser mais díspares. Frente às escassas obras literárias que tocaram no delírio dos sósias, aparece na história da literatura uma incômoda série de autores que se ocuparam da vivência do próprio duplo. Alguns nomes desta série: Andersen, Annunzio, Aristóteles, Baudelaire, Dostoiéwski, Goethe, Hoffmann, Kafka, Maupassant, Musset, Oscar Wilde.


Desenvolvimento

Aristóteles informa sobre um viajante, que estava há tempos sem dormir. Uma noite em que cavalgava através de uma neblina muito espessa, viu repentina­mente cavalgar a própria imagem a seu lado. Esta imagem imitava todos os seus mo­vimentos e ações. Quando teve que atravessar um rio, o fantasma fez o mesmo. Por fim, quando a neblina diminuiu, a aparição esfumaçou-se.

Esta observação de Aristóteles é a primeira descrição de vivência heautoscópica que veio à luz. Uma referência posterior sobre a vivência heautoscópica figura na obra Malleus maleficorum, de Nider, publi­cada em 1614: um habitante de Colônia, tão logo se deitava na cama, começava a ver ao seu lado uma imagem de si mesmo. O fenômeno se prolongou durante algum tempo, apesar de que o próprio indivíduo o considerava como algo impossível.
Goethe diz como viu sua própria imagem "não com os olhos do corpo, mas com os, do espírito". Observe-se aqui a ausência de elementos aluci­natórios.

A heautoscopia enquanto conceito psiquiátrico tem uma história longa e uma bibliografia desconcertante, dados que se contrapõem às escassas referências existentes sobre o delírio dos sósias ou síndrome de Capgras (vide Artigo na RedePsi). O bombardeio bibliográfico, segundo anotações de Flournoy (1902), inicia-se em França por Bonnet em 1760, e continua na Alemanha por Hagen em 1837. Posteriormente se ocuparam do tema: Féré (1891), Leroy (1898), Flournoy (1902), Sollier (1903), Bain (1903), Schilder (1914), Henschen (1925), Schroeder (1925 e 1926), Menninger-Lerchen­thal (1935), Haug (1939), López Ibor (1950, 1957 e 1966), Hecaen e Ajuriaguerra (1952), Conrad (1953), Lippman (1953), Critchley (1953), Pearson e Dewhurst (1954), Russel e Whitty (1955), Leischner (1961) e outros mais.

A Hagen (1837) se deve a primeira tentativa de quebrar a unidade descri­tiva da aparição do próprio duplo. Distingue dois modos de aparecer o duplo próprio: um duplo de figura e feições idênticas às do indivíduo, e um duplo de forma corpórea diferente da do indivíduo. A irrupção de um duplo do primeiro tipo pertence ao que se chama heautoscopia. O segundo tipo de duplo foi chamado por Hagen deuteroscopia.

Féré (1891) aplica a designação de "autoscopia" à experiência de um médico gravemente enfermo que acreditava ver sua própria imagem como em um espelho. Menninger-Lerchenthal (1935) recusa esta designação,    cuja significação etimológica estrita corresponde ao ato de "olhar-se a si mesmo", e a significação clínica, ao ato de "examinar os próprios órgãos", aplicando-se especialmente em laringologia ao exame da garganta, e a substitui por "heautoscopia", já que o fenômeno consiste em uma "percepção enganosa da figura de si mesmo".
Sollier (1903) distingue nas experiências pessoais de duplicação: a duplicação da pessoa física, a duplicação da pessoa intelectual e a duplicação da pessoa moral. E chama "autoscopia" ou "alucinação autoscópica" à duplicação sensorial.

Sollier (1903) apresenta o primeiro sistema classificatório das "aluci­nações autoscópicas". Divide-as em internas e externas. Nas internas, o indivíduo vê seus órgãos interiores. Nas externas, vê seu corpo exterior ou partes do mesmo. Na "autoscopia interna" não há uma verdadeira aluci­nação visual, mas uma "verdadeira sensação objetivada". A "autoscopia externa" é mais uma representação, que pode considerar-se como uma verdadeira alucinação visual. Distribui estas alucinações autoscópicas em positivas e negativas. Nas positivas, o enfermo se vê a si mesmo; nas negativas, o paciente não pode ver-se a si mesmo, ainda que se contemple no espelho.

As "autoscopias positivas", segundo Sollier se subdividem nas va­riantes: autoscopia especular ou alucinação especular; autoscopia díspar ou deuteroscópica, na qual o duplo não tem a forma do indivíduo, mas espiritualmente é idêntico a ele; e a autoscopia cenestésica, onde o duplo não é visto, mas somente experimentado em forma de sentimento e reconhecido como idêntico ao sujeito.

Os conceitos da "autoscopia negativa" e da "autoscopia interna", a meu ver, devem excluir-se do que hoje se chama heautoscopia. Por um lado, a autêntica heautoscopia negativa é muito rara que Leischner (1961) e outros autores a estudam juntamente com o fenôme­no que consiste na apreciação visual de uma metamorfose corporal própria; fenômeno que em realidade pertence às vivências de desrealização corporal, isto é, às vivências de estranheza referidas ao próprio corpo enquanto objeto. A título de exemplo, eis um caso descrito por Lhermitte (1951), que aparece incluso na heautoscopia negativa no trabalho de Leischner:

- Um homem que se barbeava viu, de repente, suas feições completa­mente alteradas. Assustou-se tanto que jogou o aparelho de barbear longe e fugiu co­rrendo.

Por outro lado, o conceito de "autoscopia interna" foi muito criticado. Para Bain (1903), é um fenômeno cenestésico, uma percepção real que só é acessível aos indivíduos em transe hipnótico e às histéricas graves. Certas histéricas podem tomar consciência não somente da estrutura macros­cópica de seus órgãos internos, mas, às vezes, sua estrutura microscópica, como também, elas podem perceber seu funcionamento e dominá-lo voluntaria­mente. Algumas experiências desta espécie foram inventadas peIas pacientes histéricas ou apareceram nelas sob a pressão das sugestões do clínico. É sabido peIa observação de histé­ricas, que elas, para atraírem mais a atenção dos clínicos, simulam a capacidade de ver através da pele. Menninger-Lerchenthal (1935) adota uma postura cética ante a "autoscopia interna". As escassas descrições existentes de casos deste fenômeno, a meu ver, representam quase sem exceção um produto psicógeno artificial. Ao contrário da heau­toscopia, que prevalece nos homens, a "autoscopia interna" foi  descrita somente em mulheres histéricas.

Deste recorte das "autoscopias" de Sollier, só se confirmam as "autoscopias externas positivas".
Aqui está incrustado o núcleo da atual heautoscopia. Poderia falar-se, em princípio, seguindo a classificação de Sollier, de heautoscopia especular, díspar e cenestésica, onde os tipos díspar e cenestésico correspondem plenamente a vivências de des­personalização. Torna-se surpreendente que esta pista tenha sido perdida por grande parte dos autores modernos. Por exemplo: Mennlnger-Lerchenthal (1935) define unicamente a heautoscopia como "uma alucinação óptico-cenestésica do esquema corporal, cujo desdobramento é produzido por processos psíquicos e mecanismos ligados ao sistema vestibular, tronco cerebral e córtex parieto-occipital". Define, então, este fenômeno "como um esquema corporal alucinado". E destaca que o "eu" central, pelo qual o homem toma consciência de si mesmo, permanece incólume.

O próprio Menninger-Lerchenthal (1935), ao abordar o estudo do condicionamento psicológico e psicopatológico da heautoscopia, admite, apesar de sua concepção unitária do fenômeno heautoscópico, a influên­cia de uma ampla série de fatores:

- Determinadas situações afetivas que reforçam a capacidade de auto-observação e auto-análise.

- Certa turvação da consciência que pode tomar a forma de sonho, da sonolência em estado vigil ou de uma breve interrupção da consciência lúcida, por exemplo, nos estados de fadiga ou de hiperatividade da fantasia. Em outros casos há uma leve alteração da consciência secundária a um transtorno do sistema vestibular.

- Uma disfunção do esquema corporal que conduz à dissociação deste esquema em forma de uma alucinação global óptico-cenestésica ou em forma de uma fusão de fenômenos ópticos e cenestésicos anormais. O fato de que o vestuário do indivíduo e outros objetos ligados a ele circunstancial­mente possam ser incluídos na aparição heautoscópica, representa uma confirmação de que pertençam ao esquema corporal.

- Uma alta capacidade de auto-observação ou a freqüente observação da imagem própria em um espelho. (Este dado está em flagrante contradição com a nítida prevalência masculina da heautoscopia).

Para Menninger-Lerchenthal (1935), a heautoscopia tem certo parentesco com a despersonalização, o déjà vu, o transitivismo e a voz alucinatória que chama o indivíduo por seu próprio nome. A aparição de todos estes fenômenos tem uma base comum: a alteração fundamental da consciência do "eu" e dos transtornos do esquema corporal (o eu físico). Pode-se des­crever a heautoscopia como uma "aparição transitivista", como uma projeção exterior do "eu".

A heautoscopia, a meu ver, é uma síndrome que não só varia amplamente em sua etiologia correlata, mas também, em seu condicionamento psíquico e em sua sintomatologia. Atendendo a seu modo de aparecer, podem distinguir-se três variedades aparentes:

(1) a despersonalização heautoscópica,

(2) a alucinação heautoscópica, e

(3) a vivência delirante heautoscópica.

As duas primeiras varie­dades correspondem, respectivamente, à "autoscopia cenestésica" e a "au­toscopia especular" da clasificação de Sollier. À autoscopia deuteroscó­pica de Sollier, na qual o indivíduo se sente ligado psiquicamente a um duplo de figura corporal diferente da sua, também se deve incluir a des­personalização heautoscópica. O delírio heautoscópico de nossa classificação atual não aparece representado nas modalidades de Sollier.

A heautoscopia ou o próprio duplo, segundo Karl Jaspers (1953), consiste em perceber ou em representar-se o próprio corpo no mundo exterior, como uma espécie de segundo "eu". Acrescenta Jaspers que o fenômeno não é unitário; pode tratar-se de uma alucinação, uma vivencia delirante, uma cognição corpórea ou uma representação. O sinal idêntico consiste em que o esquema corpo­ral próprio cobra sua realidade no espaço exterior. Foi López Ibor (1957) quem formulou com toda clareza os íntimos vínculos existentes entre a heautoscopia e a despersonalização.

A ordenação hierárquica das três variedades aparentes de heautoscopia, de acordo com o critério fenomenológico, permite distinguir duas moda­lidades primárias de heautoscopia:

(1) uma modalidade muito freqüente, a des­personalização heautoscópica; e

(2) uma modalidade rara, a vivencia de­lirante heautoscópica.

A alucinação heautoscópica deve considerar-se como um produto secundário da despersonalização. A modalidade nuclear e pura da heautoscopia corresponde, pois, à experiência de despersona­lização.

A aceitação da despersonalização heautoscópica como fenômeno heautoscópico básico, obriga a modificar notoriamente as explicações que se vinham incorporando ao gênero das heautoscopias. Como López lbor (1957 e 1966) pontifica, deixam de ter vigência os conceitos de cenestesia e de esquema corporal e passa ao primeiro plano o "eu" corporal.

O "eu" corporal, sinônimo de corporeidade e de vivência do corpo, diz López Ibor, é uma experiência primariamente única. "Não existe um esquema corporal como síntese a agregação de todas as sensações que integram a cenestesia". (O conjunto das sensações internas ou orgânicas constitui a cenestesia). "A experiência do ‘eu' corporal, continua López Ibor, não se oferece como uma notícia passiva; é um erro acreditar, como no antigo conceito da cenestesia, que se trata de uma espécie de telegrama que vai enviando cada órgão, e, por que não cada célula, a um centro onde habita essa percepção do ‘eu' corporal que se chama cenestesia." Pensava-se assim mesmo que os elementos sensoriais da cenestesia eram localizados em virtude de uma função do vestibular, "o nervo do espaço", e que o esquema de nosso corpo era, assim, uma função vestibular. "Todas estas idéias acerca do modo de constituir-se em esquema corporal - acrescenta López Ibor - estão montadas sabre uma psicologia de tipo associacionista, no qual os conteú­dos psíquicos superiores provêm da agregação de elementos". Em defi­nitivo: a vivência de nossa existência corporal não provém de uma sínte­se de sensações, mas constitui uma experiência global unitária. Sua tonalidade nos é dada por essas sensações globais da corporeidade que cha­mamos "sentimentos vitais" (Scheler).

A despersonalização heautoscópica é uma experiência de estranhamento referido ao "eu" corporal. "O ‘eu' - diz López Ibor - se sente como um corpo astral emigrado do corpo." Sollier (1903) descreve a "au­toscopia cenestésica" não como uma alucinação visual nem como um fenômeno visual de qualquer tipo, mas como a projeção exterior objetivante das sensações cenestésicas. Assim tem lugar a duplicidade da pessoa sensível. Este duplo sensível pode ser revestido dos atributos atuais exteriores ou dos atributos morais. López Ibor (1957 e 1966) analisa estes conceitos de Sollier à luz de sua concepção e distingue uma experiência primária e una experiência secundária.
"A experiência primária de estranhamento, tem um caráter compacto, simples e unitário e está referido ao ‘eu' corporal. O processo secundário, de revestimento, por parte do indivíduo da experiência primária, é o que tem lugar nos casos complicados".
Esta simples e clara formulação do problema permite suspeitar que muitos dos casos refe­ridos pelos respectivos autores como alucinação heautoscópica, perten­cem realmente à despersonalização heautoscópica. A alucinação ou a pseudoalucinação visual representa um elemento sobreposto secundaria­mente à experiência primária de despersonalização corporal.
A despersonalização heautoscópica está vinculada à vivência de angústia. López Ibor (1950 e 1966) se refere a estes vínculos: "A angús­tia consiste na experiência da ameaça da dissolução do eu, que pode realizar-se em vários planos, e um deles é o de sua fusão com a corporei­dade. Na experiência angustiosa aguda todos os planos se recorrem rapida­mente, e o que o indivíduo sente é a angústia sem saber o porquê, isto é, sem um sistema de referência. Quando a experiência se desenvolve mais lentamente, oferece sua autonomia interna, e uma de suas regiões topográficas está constituída peIa fusão do "eu" com a imagem corporal. Na ameaça da dissolução, esta - a imagem corporal - se aliena, converte-se em algo estranho, às vezes como totalidade, às vezes como parte, segundo o "eu" se sinta total ou parcialmente ameaçado. Por isso, o paciente diz: "Este corpo não é meu", e ao lhe contestarmos, modifica sua ex­pressão dizendo: "Como se não fosse meu."

As descrições da heautoscopia que se baseiam, a meu ver erroneamente, na noção do esquema corporal, supervalorizaram a par­ticipação genética do mecanismo vestibular. Esta supervalorização se de­riva da identificação das vertigens timopáticas ou subjetivas dos pacientes com heautoscopia, como vertigens vestibulares ou objetivas. Nas vertigens vestibulares o que está alterado é a percepção do espaço. Nas vertigens timopáticas (ansiedade patológica), a representação do espaço. "Seus casos, diz López Ibor, referindo-se a Bonnier, que foi o primeiro autor que destacou a in­tervenção das perturbações vestibulares na alteração do "esquema corporal heautoscópico", mais que exemplos de vertigens típicas vestibula­res, são exemplos de vertigens timopáticas ou agorafóbicas, idênticas no fundo à chamada por Barré anxiété vestibulaire. Assim, tais crises vertiginosas são algo diferente que a expressão de um distúrbio labiríntico: são equivalentes de crises ansiosas. Angústia e vertigem são duas modalidades de apresentação do mesmo fenô­meno, como o demonstra a leitura das mesmas observações de Bon­nier e a, das contidas no livro A angústia vital, de López Ibor.

Em outras ocasiões, a despersonalização heautoscópica se deriva de uma queda do nível da consciência. López Ibor (1966) descreve este me­canismo genético: "Na crise de ansiedade aguda pode observar-se certa turvação da consciência; no pré-sonho, na aura epi­lética, também se acha outra forma de consciência turva ou que esteja turvando. É natural que a consciência do eu, que é um círculo ou setor da consciência geral, sofre o impacto desse véu que lhe cobre. Em episódios leves da mesma, a ruptura com a realidade se manifesta como uma espécie de estado com tendência às elaborações fantasmáticas e oniróides. A vivência simples, em princípio, da percepção da corporeidade, se elabora a este nível oniróide, e então os perfis do fenômeno aparecem projetados com um tamanho monstruoso. O paciente sente seu corpo cortado peIa metade, ou algo parecido. Também tem lugar as realizações plásticas da síndrome de desperso­nalização, nas quais o pitoresco chega aos limites da credulidade.

Para Hecaen e Ajuriaguerra (1952) os três fatores genéticos fun­damentais na heautoscopia são:

(1) a ansiedade,

(2) os transtornos vestibulares, e

(3) a alteração da consciência de tipo hipnagógico.

O curioso é que estes autores, seguindo a linha interpretativa de Menninger-Lerchen­thal (1935) consideram que a forma típica da heautoscopia é a alucinação heautoscópica, e a forma atípica, a despersonalização heautos­cópica. A discrepância entre esta opinião e os pontos de vista aqui expos­tos, até o momento, talvez se deva a que uma ampla série de alucinações, pseudoalucinações e representações visuais do duplo não são, um sinal primário, mas que se sobrepõe à experiência primária da despersonalização corporal.

Esta suspeita se baseia em que a maior parte das observações de ca­sos de visão do duplo, referem que este duplo, ainda que mudo, mantém uma comunicação afetiva e ideativa com o indivíduo que a vivencia. A experiência primária de despersonalização culmina aqui secun­dariamente em um desdobramento sensorial do "eu". Não tem isso nada de particular: os diversos transtornos do "eu" exercem uma poderosa ação transfiguradora sobre as percepções. Os exemplos estão na men­te de todos: a desrealização e as mudanças na percepção do próprio corpo que temos, do corpo como objeto, são derivações da des­personalização; a metamorfose persistente da imagem corpórea de si mesmo pode acompanhar à quebra da identidade do "eu"; uma meta­morfose intermitente e parcial (de alguns traços corporais) acontece em certos momentos da duplicação do "eu" integral, da perda da unidade do "eu".

Por outro lado, a experiência de estranheza do "eu" corporal, elemen­to definidor da despersonalização heautoscópica, implica uma ruptura da unidade do "eu". Esta ruptura pode continuar regular ou irregularmente a hipotética linha de articulação entre o "eu" corporal e o "eu" psíquico. Se a segue regularmente, só se desdobra a corporeidade. Se a ruptura, pelo contrário, segue uma linha irregular, a duplicação afeta à corporeidade e ao "eu" psíquico: na vivência do duplo se incrustam alguns frag­mentos da própria vida psíquica do indivíduo. Em qualquer caso, estes trans­tornos do "eu" tendem a forçar ao indivíduo a materializar visualmente o duplo.

A impressão experimentada por um indivíduo normal ou com um transtorno psíquico sobre a presença de alguém em sua proximidade é descrita por Parhon-Stefanescu e Procopiu-Constantinescu (romenos) (1967) como "impressão de presença". A fadiga, o isolamento e os estados afetivos negativos, como a tristeza e a ansiedade, integram a etiologia deste fenômeno nos indivíduos sem transtorno psíquico. Os indivíduos normais, geralmente, estão conven­cidos de que a impressão de presença não corresponde à realidade. Nos pacientes psíquicos, a impressão de presença pode acompanhar-se ou não da crença na realidade da existência de certas pessoas em suas imediações. A impressão de presença acompanhada da firme certeza sobre a realidade da mesma deve ser considerada, quase sempre, como uma inspiração delirante da variedade chamada por Jaspers de "cognição delirante".

O delírio do próprio sósia (vide artigo na RedePsi) representa um fenômeno de transição entre a vivência delirante heautoscópica e o delírio de sósia alheio. A pre­sença, intuída ou vista, do duplo de si mesmo no espaço objetivo é o sinal comum ao delírio do próprio sósia e à heautoscopia. As diferenças entre ambos os fenômenos são qualitativas e absolutas. No plano descri­tivo: o duplo heautoscópico é "inventado" peIo indivíduo, enquanto que o duplo do delírio dos sósias é o produto de um falso reconhecimento: uma paciente de Dietrich (1962) acreditava que as mulheres que passeavam peIa rua eram seu próprio duplo, e outro, de Gluck (1946) dava a outras pessoas sua própria identidade. No plano fenomenológico: a vivência de­lirante heautoscópica é uma inspiração, ou intuição, delirante, enquanto que o delírio do próprio sósia - da mesma forma que ao sósia alheio, que é muito mais freqüente - pode ser uma percepção delirante ou uma interpretação deliróide.

A diferença entre o delírio do próprio sósia e o delírio de sósia alheio ou síndrome de Capgras; em troca, tem um significado escasso e alude exclusivamente ao conteúdo da vivência; vale dizer, que o duplo vivenciado seja o do próprio indivíduo ou o de outra pessoa. Em ambos os casos tratam-se de um falso reconhecimento que pode ter a estrutura vivenciaI da interpretação deliróide ou da percepção delirante. A pessoa ob­jeto do falso reconhecimento no delírio do sósia alheio pode ser uma pessoa conhecida. O falso reconhecimento que constitui o delírio do próprio sósia, em troca, se refere sempre a uma pessoa desconhecida para o indivíduo que vivencia o fenômeno. 

A casuística dos fenômenos heautoscópicos já é bastante ex­tensa e abarca um setor de pessoas sadias e outro de doentes mentais. Como agentes responsáveis da apresentação da heautoscopia nos sãos, figuram: a introspecção, a fadiga, o pré-sonho, os sonhos, os rápidos deslocamentos para cima ou para baixo em um elevador, por implicar, segundo Menninger-Lerchenthal, um transtorno da função vestibular, e, em casos recolhidos por Lhermitte (1951) de "heautoscopia voluntária".

A experiência heautoscópica pode apresentar-se nos seguintes campos nosológicos: neuroses dissociativas (histéricas), neuroses de diferentes tipos, círculo timopático, psicoses esquizofrênicas, epilepsias, paralisia geral (sífilis), encefa­lites, meningites, atrofias cerebrais, alterações cerebrovasculares, lesões cerebrais focais, transtornos pós-traumáticos, doenças infeccio­sas (sobretudo a febre tifóide, o tifo exantemático e a "gripe"), intoxi­cações (por álcool, cocaína, heroína, haxixe e mescalina) e a cegueira por atrofia óptica (Conrad, 1953).           ­

A topologia das lesões cerebrais focais e das epilepsias que podem condicionar uma experiência heautoscópica, segundo Hecaen e Aju­riaguerra, está especialmente vinculada às regiões basais e à região parieto-occipital. Contra a opinião de Menninger-Lerchen­thal (1935) de que a heautoscopia aparece preferentemente, mas não ex­clusivamente, nas lesões focais do hemisfério direito, sobretudo da região parietal, Hecaen e Ajuriaguerra (1952), baseando-se em sua experiên­cia, não admitem essa Iateralização hemisférica, e Hecaen e Green (1957) e Leischner (1961) indicam que tanto as lesões temporais como as pa­rietais podem produzir heautoscopia.


Fonte: Rede Psi

 

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